quinta-feira, março 27, 2014

A notação das agências

Há pouco, enquanto redigia um texto para um jornal, lembrei-me de uma história, que tinha esquecida na minha memória. Ela aí vai.

Estávamos em julho de 2011. O novo governo português havia tomado posse há cerca de duas semanas. O "memorando de entendimento" com a "troika" estava no início do seu processo de implementação. As agências de notação, reagindo ao anúncio das primeiras medidas, haviam, umas após as outras, e para surpresa de muitos, levado a cabo um "downgrading" de Portugal.

Um dia, na minha qualidade de embaixador em Paris, "puxei da pena" e decidi publicar no mais importante diário económico francês, o "Les Echos", um artigo (leia aqui a versão original e aqui a tradução) em que contestava as agências e procurava, entre outras coisas, sublinhar o que me parecia ser a contradição entre o início do processo de ajustamento e a sua decisão de, nesse momento, baixar a classificação do país, precisamente na véspera de uma ida aos mercados para "reciclar" a nossa dívida. Era uma época algo angustiante, em que eu ia dizendo mais ou menos o mesmo a todas as televisões e rádios a que conseguia fazer chegar a voz oficial portuguesa em França. Sem pedir quaisquer instruções a Lisboa, diga-se.

Num desses dias, fui desafiado a debater numa importante rádio e televisão noticiosa - já não sei se foi a BFM ou a LCI - com um representante da "Standards & Poor's". Por um instante, hesitei em aceitar o convite, dada a dúvida de estar à altura da tecnicidade do debate. Mas aceitei o risco, porque temia que a "falta de comparência" deixasse o homem da agência sem contraditório. O debate acabou por ser sereno e civilizado. A certo passo, confrontado por mim com a questão do facto de Portugal estar a cumprir precisamente aquilo que a comunidade internacional lhe pedira e a estranha atitude das agências de notação, o meu interlocutor foi muito claro: "É evidente que nós achamos positivo que Portugal esteja a corresponder, desde a primeira hora, àquilo que o memorando exige. Mas não nos compete avaliar a vossa vontade política e mesmo os eventuais efeitos, a prazo, da "receita" que vai ser aplicada ao longo dos próximos três anos. Nós avaliamos as consequências imediatas das medidas que agora vão ser postas em prática na vossa economia. E essas medidas, indo ou não no caminho certo, têm agora um efeito recessivo, porque contraem o mercado interno e afetam o crescimento económico. Esse é o mercado que avaliamos".

A partir desse dia, passei a perceber melhor as agências de notação e a fazer uma leitura um pouco mais sofisticada dos seus "humores".

8 comentários:

jj.amarante disse...

Às vezes, deixar uma hiperligação para outro blogue é automaticamente considerado como "spam" pois os comentários dos blogues prestam-se a isso. Umas poucas vezes no meu blogue escrevi sobre as agências de notação que me parecem deformadoras do mercado. Digo isso nestes posts contendo a palavra "rating": http://imagenscomtexto.blogspot.pt/search?q=rating

Alcipe disse...

Os mercados como padrão de moralidade são uma invenção do ordoliberalismo alemão, o pensamento liberal anglo-saxónico, que domina o mundo fora da fantasias europeias, rege-se por padrões mais pragmáticos.

Defreitas disse...

Pois é, apesar dos erros magistrais das agências de notações, particularmente no momento da derrocada da Lehman Brothers em 2008 (três dias antes que a maior banca americana se declare em falência, as agências tinham-lhe dado uma AAA, a melhor nota), as agências voltaram para o mercado e continuaram a fazer o mesmo circo como se nada se tivesse passado. Nenhuma lógica ou bom senso não vieram explicar este regresso das agências de notação : a amnésia parecia ter imperado sobre toda outra consideração perante estas empresas privadas que emitem avisos sobre a saúde dos Estados em cima das notas que lhes dão.

Os dirigentes económicos e políticos parecem ter esquecido que são estas mesmas agências de notação que permitiram a crise das "subprimes" que provocaram a crise económica, notando o melhor possível os bancos que inundaram o mercado financeiro com estas titrisaçoes completamente podres !

Mas como é possível para estas agências de notação, serem objectivas nas notas que dão aos bancos, quando sabemos que são estes bancos, clientes das agências, que as remuneram? E como notar negativamente os produtos dos bancos ? Enquanto sabemos que a função essencial , entre outras, devia ser precisamente de avaliar a qualidade dos produtos negociados nos mercados financeiros!

Em conclusão, estas sociedades, dotadas dum direito exorbitante, são uns verdadeiros parasitas, Senhor Embaixador, não servem para nada, não criam nenhuma riqueza, e fazem com que o dinheiro dos bancos continue a reinar como mestre do mundo, com direito de morte sobre os países e os povos.

Anónimo disse...

Belos tempos da diplomacia portuguesa

Defreitas disse...

A Alcipe:



Na época em que o ordoliberalismo foi pensado, existia uma real preocupação na Alemanha de não cair na economia planificada do colectivismo soviético. Eram os tempos do preludio do nacional socialismo dos anos 30. Hoje, não vejo nenhuma razão para manter esta filosofia, à qual, entretanto, Frau Merckel ainda adere profundamente. Ela sofreu muito ao ser obrigada a aceitar o compromisso com o SPD, instituindo o salário mínimo e a reforma avançada a 62 anos para as mulheres, em vez de 67.

Em França há quem pense que aqui reside um dos principais escolhos para a construção definitiva da Europa, porque sem duvida nenhuma, cada vez que a França fará proposições que tendem para um modelo social europeu inspirado pelo modelo social francês, que procura suavizar a austeridade ditada pelo liberalismo, encontrará sempre a resistência alemã. A Alemanha prefere os "jobs" a 1 euro/ hora, inspirados por Hartz, que a solidariedade social.

Por outro lado, o sonho alemão de germanização da Europa, encontrará sempre à sua frente o obstáculo francês, mesmo se a recente tendência social democrata liberal de Hollande, que volta as costas ao socialismo, parece dar um passo em direcção do modelo alemão.

Anónimo disse...

Excerto de um artigo muito interessante de J.Mendonça da Cruz, num blog da"concorrência" (Corta-fitas)

"O «homem novo» no mundo velho
Aquilo que tanto irrita Sócrates (e aliás, todo o PS, e, aliás, a imprensa cor-de-rosa) não é tanto ver-se confrontado com contradições por um jornalista sério, mas sentir o seu velho mundo fugir-lhe debaixo dos pés. Sócrates (e aliás, todo o PS, e, aliás, a imprensa cor-de-rosa) ainda defende a ilusão em que acredita. Não o ouviram louvar os níveis de crescimento de 2010? Claro que sim, porque ele (e o PS, e a imprensa cor-de-rosa) continuam mergulhados nesse mundo dos investimentos em tgvs, aeroportos e estradas que criam emprego transitório, e cujo único defeito é produzirem desgraças quando é preciso reembolsá-los. Não o ouviram protestar, há dias, as vantagens das energias alternativas? Claro que sim, porque ele continua a acreditar (e o PS, e a imprensa cor-de-rosa) numa modernidade feita à força - sempre a mania do «homem novo», cujas únicas consequências tristes são a outorga de domínios económicos inteiros a restritos grupos económicos, e a morte da concorrência, e a subida artificial das tarifas, e a asfixia da indústria. Não o ouviram vituperar a queda do investimento público, na sua versão tão lacunar-keynesiana? Claro que sim, porque para ele (e aliás para todo o PS, e, aliás, para a imprensa cor-de-rosa) é o Estado que faz crescer, não «as pessoas». «As pessoas», para os socialistas, não estão primeiro, estão depois - é a elas que o Estado «dá», depois de provocar «crescimento». Não o ouviram (e ao PS e à imprensa cor-de-rosa) proclamar que éramos ricos no seu tempo, e o país «empobreceu» agora? Ele tinha que dizer isso, porque ele acredita no mesmo que acredita todo o PS e a imprensa cor-de-rosa: que se uma pessoa auferir 2000 euros mensais e, todos os meses, gastar 1500 euros em viagens, 600 em renda e alimentação, e 1000 em entretenimento e compras, essa pessoa vive bem; mas, se o banco exigir o reembolso do crédito, essa pessoa empobrece. E não ouviram Sócrates proclamar (e aliás, todo o PS, e, aliás, a imprensa cor-de-rosa) que estava tudo a correr tão bem? Claro que ouviram. Para eles (e o PS e os cor-de-rosa) estava tudo a correr fagueiro, e o défice, e a dívida conhecida e escondida, e o baixo crescimento, e a pobreza (que foi em 2010 que ultrapassou os 17%) tudo isso caíu do céu, obra «dos mercados», e da crise e da troika e deste governo horrível."

Alexandre

patricio branco disse...

sim, os critérios deles são outros, não é o bom comportamento do devedor, que pode até não significar sucesso ou garantia de pagar, terão outros elementos de avaliação bem sofisticados e, inclusivamente, espertezas e truques psicológicos, dizer que as coisas não estão bem, mesmo que não estejam mal, será do ponto de vista deles um estimulo, uma chicotada para o devedor para que faça mais, não se relaxe, atrase, etc etc
mas essas agencias de notação tambem se deixam enganar por espertalhões e malabiristas profissionais, o que não será o caso de portugal...

luis barreiro disse...

Camarada Embaixador,
Na minha humilde ignorância o que está a dizer resume-se: se nós não pedirmos dinheiro emprestado á fartazana, então não nos colocámos nas mãos dos agiotas.
A solução para "lixar" os mercados e as agências é tão simples?

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