domingo, novembro 08, 2009

Vasco

É o afloramento da minha "costela" brasileira, mas não posso deixar de congratular-me vivamente com o retorno à divisão principal do Brasil do velho Vasco da Gama, o mais representativo clube português por aquelas terras.

Um forte abraço ao meus amigos vascaínos!

Condução

A história da condutora de automóvel portuguesa apanhada 38 vezes sem carta de condução e que - ao que parece, porque certezas, no âmbito da nossa Justiça, não tenho nenhumas - só agora irá ser condenada a pena efectiva de prisão, continua a divertir alguma imprensa e "blogosfera" deste país.

Na França, haverá também haver uns casos parecidos, mas a nossa vocação para entrar neste triste e ridículo domínio do Guiness parece imbatível.

sábado, novembro 07, 2009

Diplomacia e filatelia

Talvez poucos (se alguns) dos leitores deste blogue conheçam a cidade de Soukhoumi, capital da auto-proclamada República da Abcásia, território que a Geórgia considera pertencer-lhe e que é objecto de uma já antiga disputa internacional. Trata-se de uma estância no Mar Negro, que foi uma reputada colónia balnear ao tempo da antiga União Soviética. As batalhas entre as forças abcases e georgianas deixaram a cidade com profundas marcas de guerra, as quais, no entanto, não foram suficientes para fazer desaparecer algum do seu antigo "charme".

Fui a Soukhoumi em 2004, integrado numa missão da OSCE, composta por vários observadores internacionais. Recordo, ainda com algum frio na espinha, uma viagem num bem usado helicóptero ucraniano, ao serviço da ONU, ao longo da respectiva costa. Ao perguntar porque razão voávamos tão distantes de terra, um dos pilotos, com toda a naturalidade, disse-me que era para tentar evitar os mísseis. É que tinha havido, tempos antes, uns problemas... Fiquei imensamente sossegado!

As nossas conversas na capital da Abcásia, com as autoridades separatistas locais, não conduziram a muita coisa, salvo, talvez, a precisar melhor o campo das divergências e o rigor dos argumentos independentistas. Saídos das sessões de trabalho, tornadas mais pesadas pela obrigatoriedade de interpretação, fizémos uma caminhada ao longo de um passeio que me recordou a Foz, no Porto, sempre acompanhados por segurança. No final desse percurso, chegámos a um restaurante, onde nos ia ser oferecido um almoço.

Foi então que alguém constatou que dois diplomatas, um belga e um outro cuja nacionalidade não retive, haviam saído do grupo e tinham desaparecido, sem rasto nem aviso. A preocupação espalhou-se pela delegação, em especial a partir do momento em que a vimos transposta para a cara dos responsáveis abcases, que entre si trocavam conversas tensas, enviando já polícias pela cidade.

Passaram longos minutos e, por esse imprevisto, a refeição formal acabou por não decorrer com a serenidade desejada. Até que, cerca de meia-hora mais tarde, lá vemos entrar na sala, para grande alívio, os nossos dois desaparecidos colegas. Pela mesa passou a palavra de que , por qualquerrazão, haviam decidido fazer um outro passeio. Sentaram-se discretos, sob o olhar reprovador da generalidade dos convivas.

Só no final do repasto nos elucidaram da razão do atraso: tinham feito uma "escapada" aos correios locais, para adquirir colecções de selos da Abcásia, aparentemente muito difíceis de obter à distância. Vinham impantes, com a antecipada certeza de terem conseguido raridades que iriam abrilhantar as respectivas colecções.

A diplomacia também ajuda a filatelia. Será que os nossos colegas se haviam incorporado na missão, fisicamente algo arriscada, apenas para comprar selos abcases? Nunca saberemos.

Fado

Na noite de sexta-feira, graças a uma iniciativa da Rádio Alfa, essa instituição de referência que une a comunidade portuguesa da zona de Paris, teve lugar em Créteil uma bela noite de fado.

Tenho ouvido mais fado de qualidade em França, desde que aqui cheguei, do que em toda a última década da minha vida, por esse mundo fora. A França é um destino regular dos melhores fadistas portugueses.

A iniciativa do comendador Armando Lopes, a alma por detrás da Rádio Alfa, conseguiu, uma vez mais, trazer ao vivo e pela antena três vozes de qualidade: Filipa Cardoso (na imagem, que não conhecia e que me pareceu de uma escola fadista próxima de Maria da Fé), António Pinto Basto e Mafalda Arnauth.

Inveja

Há semanas, uma conversa com compatriotas aqui residentes há bastantes anos trouxe à discussão a questão das "lideranças" da comunidade portuguesa em França. Alguém dizia que, contrariamente a outras comunidades de origem estrangeira, os portugueses não geram figuras de dimensão nacional, que possam projectar a sua especificidade no seio da sociedade francesa, levando as instituições deste país a terem mais em conta - e mais em consideração, o que não é necessariamente a mesma coisa - aquilo que interessa à nossa comunidade.

Em muitas dessas conversas, o mote é clássico: "nós, os portugueses, não nos sabemos unir", "não aparece gente capaz para ocupar lugares de relevo" e, na lógica de quem quer "passar uma bola" que o incomoda, "é importante que alguém faça alguma coisa para mudar isto".

Há uma triste ironia quando se comparam estas conversas com algumas outras em que se discute pessoas de nacionalidade ou origem portuguesa que, numa ou noutra actividade, conseguiram uma certa relevância e projecção ou estão em percursos de ascensão. Aí, o tom já é outro: "não passa de um ambicioso", "está a aproveitar-se de ser português para obter lugares de 'poleiro' ", "o que ele quer é subir na vida à nossa custa" ou "comigo não conta ele para se promover".

Talvez não seja por acaso que a última palavra de "Os Lusíadas", essa obra que é um pouco o nosso espelho histórico, seja "inveja".

sexta-feira, novembro 06, 2009

Ubiquidade

O dom da ubiquidade - conseguir estar em vários lugares, ao mesmo tempo - é algo que, apesar de denodados esforços que há muito venho a fazer, se tem tornado um tanto difícil de concretizar. Pode ser que com o tempo...

Há dias, a simpática obrigação de ir fazer uma palestra a Poitiers, a convite de Sciences Po, fez com que não pudesse estar, como desejaria, num colóquio que teve lugar, à mesma hora, na Fundação Gulbenkian, aqui em Paris, sobre a obra de Maria Judite de Carvalho. E que, por esse motivo, e ao que me dizem, tivesse faltado a uma visita ao salão internacional de construção - o Batimat - onde figuram muitas e importantes empresas portuguesas.

Uns dias antes, uma deslocação de trabalho à periferia de Paris, há muito fixada, impediu-me de estar presente num outro importante colóquio, desta vez sobre a figura de Joel Serrão, um evento a que muito gostaria de ter assistido. Nessa mesma data, o Champagne de Sousa, uma marca magnífica que ostenta as nossas origens, tinha um lançamento a que, do mesmo modo, me vi obrigado a faltar.

Esta conflitualidade de horários e locais, às vezes agravada pelo trânsito infernal das horas de ponta em Paris, passa-se quase todos os dias, para compreensível desespero dos simpáticos convidantes que tenho de "deixar cair" e que, imagino, algumas vezes devem julgar que o embaixador de Portugal se "está nas tintas" para as suas iniciativas. Não estou, embora pouco possa fazer para evitar tais embaraçantes situações, para as quais apenas posso contar com a compreensão de quem solicita a minha presença e acaba por não tê-la.

Dito isto, acreditem ou não, a diplomacia pode ser considerada uma das poucas profissões onde a ubiquidade ainda pode existir. Como na história que vou contar.

Foi no século passado (expressão magnífica, que agora nos permite qualificar tudo o que tenha mais de 10 anos...), ainda na década de 70. Numa tarde de sábado, passeava eu pelo Chiado, em Lisboa, numa segunda quinzena de Dezembro, dou de frente com um colega mais velho, colocado num posto distante, num outro continente, de cuja área geográfica eu me ocupava. Trocados cumprimentos e outras banalidades, explicou-me que tinha vindo para o Natal e que só regressaria ao posto em meados de Janeiro. Despedimo-nos, com as óbvias boas-festas à mistura e lá fomos para o fim-de-semana.

Na segunda-feira seguinte, ao final da tarde, pousa sobre a minha secretária, no Ministério, um telegrama (nome que damos à forma de comunicação entre as missões diplomáticas e consulares e Lisboa) assinado pelo referido diplomata. O texto era datado desse mesmo dia. Estranhei, mas, sendo ao tempo mais ingénuo do que sou hoje, pensei tratar-se de um erro do serviço de expedição.

No dia seguinte, terça-feira, surge um novo telegrama, sobre outro assunto, igualmente assinado por aquele colega, oriundo da cidade onde estava colocado. A data era desse mesmo dia.

Na quarta-feira, o tráfico "telegráfico" parou. Pronto, pensei eu, o nosso homem decidiu suspender o envio a Lisboa de telegramas "fantasma".

Mas logo na quinta-feira, ei-lo que volta à carga, agora com um elucidativo texto: "Parto amanhã de férias para Lisboa, depois de encerrado o expediente, deixando F... como encarregado dos arquivos". Texto magnífico: "ganhava" esse dia como se estivesse em posto e, com o habilidoso "depois de encerrado o expediente", obtinha também a totalidade da sexta-feira. Na prática, ia iniciar férias no... sábado! O nosso homem, tinha assim conseguido "sobreviver" formalmente no posto durante uma semana mais, exactamente o mesmo tempo em que já se passeava, com toda a calma, por Lisboa.

As coisas hoje já não são assim, lá pelas Necessidades. A transparência da vida diplomática não permite estes truques. Mas temos de ser justos: são eles que nos permitem afirmar que a ubiquidade pode ser considerada uma característica diplomática.

Os portugueses e a política francesa

O Rádio Clube Português perguntava-me, há minutos, o modo como a comunidade portuguesa em França apreciava a acção do presidente Nicolas Sarkozy, nesta primeira metade do seu mandato. Em especial, se ela acompanhava a tendência da sondagem do "Le Nouvel Observateur" de ontem, que consagra algum desgaste de imagem do líder francês.

Para além do cuidado diplomático que um representante estrangeiro deve ter sempre neste tipo de comentários, dei-me conta de que, mesmo que quisesse, seria impossível para mim ter uma opinião clara, pelo facto da nossa comunidade ter por aqui um papel de uma discrição quase extrema em matéria da vida política local.

Muito embora haja já um número interessante de eleitos de origem portuguesa nas instituições democráticas francesas, essa presença está ainda bem longe daquela que seria desejável para uma defesa plena dos seus interesses e da comunidade em que estão inseridos. E é pena que assim aconteça: bem melhor seria que os portugueses com direito a voto fossem activos protagonistas da sociedade política francesa. Nesse caso, não apenas os partidos políticos franceses procurariam, com maior frequência, recrutar figuras da nossa comunidade para lugares electivos, a fim de "arrastar" consigo o voto português, mas, igualmente, os próprios eleitos franceses se mobilizariam em favor das agendas de interesses da nossa comunidade (em especial em matéria de ensino e promoção de apoio local às suas instituições associativas).

O facto dos portugueses serem uma "comunidade silenciosa" é, com certeza, lido como uma nota positiva num magma social e étnico onde certos afloramentos e tensões, de outras origens, marcam pela negativa o quotidiano do país. Mas tem, como reverso da medalha, o preço de alguma irrelevância no plano das vantagens que decorrem da afirmação cívica.

quinta-feira, novembro 05, 2009

Filatelia e diplomacia

Sucumbi ontem a alguma nostalgia ao participar, aqui em Paris, na inauguração do Salão de Filatelia, no qual Portugal é o país convidado de honra.

Por instantes, vi-me nos tempos da minha adolescência, durante a qual, sob a orientação do meu pai e a tutela profissional dos clássicos catálogos portugueses de Eládio de Santos e Simões Ferreira, bem como do francês Yvert & Tellier, apurei uma muito razoável colecção de selos (que inclui mesmo o que está na imagem, o célebre "5 reis D. Maria", o primeiro selo português). Até que, lá pelos anos 80, deixei de me interessar pelo assunto, nunca percebi bem porquê - mas, muito provavelmente, porque outros entusiasmos alternativos tenham suplantado a filatelia no meu mercado pessoal de interesses. Não deixou, contudo, de ser um tempo bem curioso, em que muito aprendi de geografia e de história do mundo através dos selos.

Hoje, fiquei com a sensação de que a filatelia tende a ser uma coisa de um outro tempo. Muito poucos jovens havia no Espace Champerret para apreciar a bela exposição aí instalada. A era do e-mail ou dos SMS's parece estar a fazer desaparecer a prática do coleccionismo filatélico e, em especial, a não conseguir conquistar para ela as novas gerações.

Curiosamente, os correios portugueses mantêm um dinamismo que pode ser considerado em contra-corrente com esse desânimo e continuam a imprimir, com grande regularidade, belas colecções de selos e de produtos editoriais que lhes estão associados, conseguindo mobilizar para esse trabalho excelentes artistas plásticos nacionais. Foi, aliás, muito agradável verificar o elevado prestígio que os nossos profissionais do sector disfrutam junto dos seus pares europeus.

Pela sua qualidade, pelo modo como projectam a estética e os valores portugueses, os nossos produtos filatélicos dão hoje uma contribuição para a imagem de Portugal que podemos quase qualificar como "diplomática". Pena foi que, no famoso escândalo da empresa filatélica ibérica Afinsa, tenha acabado por ficar um "selo" diplomático português...

Europas

É muito instrutivo procurar apresentar faces diversas da Europa, tanto quanto possível apelativas, dirigidas a auditórios muito diferenciados.

Ontem, ao final da tarde, numa organização de Sciences Po, fiz em Poitiers, para umas largas dezenas de jovens, uma apresentação sobre a Europa e o modo como vemos o nosso próprio papel no projecto. O animado debate que se seguiu quase me fazia perder o TGV (bendito TGV!) para Paris. Foi muito curioso responder a várias e interessantes questões, algumas delas de tom quase inesperado, por parte de estudantes de várias origens. Aprende-se imenso ao ouvir as preocupações daqueles a quem pertence o futuro.

Hoje de manhã, já aqui em Paris, fui o "guest speaker" (até porque a apresentação foi feita em inglês) na reunião da "Bankers Association for Finance and Trade", que reune quadros superiores das grandes instituições bancárias europeias. O Tratado de Lisboa, as derivas intergovernamentais dentro da União Europeia, a preservação do Mercado Interno e outras interrogações sobre o futuro do projecto europeu animaram uma bela hora de debate. Outro auditório, outras preocupações.

Logo à noite, falarei em Neuilly sobre a experiência de Portugal na Europa. Serão outros ouvintes, muitos dos quais pertencentes às novas gerações francesas que têm origem comum portuguesa, filhos e netos de quantos, na realidade, entraram nas Comunidades Europeias antes que Portugal delas fizesse formalmente parte.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Mala diplomática

A cena passou-se num país com o qual as nossas relações bilaterais não estavam a ser fáceis, nos anos 80 do século passado.

Era sábado e o encarregado de negócios de Portugal, que chefiava a missão diplomática na ausência do embaixador, havia sido chamado de urgência pelo ministro dos Negócios Estrangeiros local.

A conversa começou tensa. O ministro colocou sobre a mesa uma carta, da qual saíam três notas de 100 dólares: "Esta carta ia ser enviada pelo vosso cônsul na cidade de X para a família, em Portugal. Contém dinheiro em "cash", o que vai contra todas as regras. Além do mais, pressupõe ser produto da obtenção de divisas estrangeiras por meios ilegais, porque, como é sabido, há neste país um controlo muito forte da circulação de moeda estrangeira e não temos registo do cônsul ter adquirido os dólares no banco central. Exigimos uma explicação urgente por parte da Embaixada."

O nosso diplomata foi apanhado de surpresa. De facto, era uma situação estranha mas, pensou, era importante falar primeiro com o cônsul e obter a sua versão do assunto. A posse de moeda estrangeira era muito vulgar no país, até porque os diplomatas eram pagos em dólares e havia serviços e aquisições locais que exigiam essas divisas. Já o seu envio por carta parecia muito imprudente. Mais para ganhar tempo do que por qualquer outra razão, inquiriu: "E esta carta ia pelo correio?".

Nesse instante, notou que o ministro hesitou um pouco, antes de esclarecer: "Não, ia na mala diplomática para Lisboa".

O nosso encarregado de negócios teve então um lampejo, recuperou o comando da conversa e retorquiu firmemente ao ministro: "A Embaixada está totalmente disponível para prestar todos os esclarecimentos sobre este assunto mas, antes que isso aconteça, as autoridades do seu país vão ter de explicar a razão pela qual violaram a nossa mala diplomática, contra todas as regras internacionais. E, ainda hoje, vou fazer chegar uma nota de protesto por este acto que, de forma ostensiva, infringe as regras da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas".

O ministro não estava à espera da resposta e foi apanhado de surpresa. Voltou à carga com a ideia da necessidade de obter uma posição sobre a questão dos dólares na carta, mas o encarregado de negócios foi definitivo: "Antes de obtermos, da vossa parte, uma explicação sobre a razão pela qual a nossa mala diplomática foi violada, não diremos rigorosamente nada sobre o seu conteúdo. Aliás, peço, formalmente e desde já, a devolução do resto da correspondência que seguia na mala diplomática, a maioria, aliás, de natureza oficial. Não sei se se dá conta que isto é de uma extrema gravidade, senhor ministro! Os senhores violaram a mala diplomática portuguesa! Isto pode vir a ser um escândalo!".

O interlocutor começou a ter consciência de que a sua posição abandonava um terreno confortável e mostrava-se já um tanto embaraçado. O nosso diplomata saiu da reunião entre o satisfeito e o preocupado, mas sem plena certeza sobre o que se seguiria.

No dia seguinte, o conteúdo da mala diplomática chegou, discretamente, à nossa Embaixada. A carta do cônsul vinha junta... sem os 300 dólares. O encarregado de negócios não chegara a mandar a nota de protesto, até porque, para o fazer, necessitava de uma autorização de Lisboa, que nem sequer obtivera. O "bluff" compensou, ou melhor, custou 300 dólares ao pobre cônsul. E o assunto morreu...

Cenas da vida diplomática, como diria o Lawrence Durrell.

terça-feira, novembro 03, 2009

Coabitação (1)

Nenhum regime crismou o termo "coabitação" de uma forma tão marcante como a V República francesa. Um dos tempos mais interessantes dessa coexistência entre um presidente da República e um primeiro-ministro, oriundos de famílias políticas opostas, foi o período em que François Mitterrand, como Presidente da República, coincidiu com Jacques Chirac, como primeiro-ministro.

Por essa razão, e porque tem alguma graça ver como os políticos, com distância, se avaliam, não resisto a transcrever este breve extracto do primeiro volume das memórias de Chicac, sob o título «Chaque pas doit être un but», que hoje foi publicado:

«Je n’ignore pas la complexité du personnage, ni les zones d’ombre qui jalonnent son parcours, mais l’homme que je découvre au fil de nos entretiens m’apparaît d’une finesse de jugement et d’une intelligence tactique que j’ai rarement rencontrées dans le monde politique. Son amour de la France est indiscutable, et il n’admet pas que celle-ci soit abaissée, même s’il tend, selon moi, à l’enfermer dans des perspectives archaïques et eût sans doute rêvé de la laisser vieillir comme un paysage qu’il aimait. Nos valeurs communes sont celles de deux provinciaux attachés aux traditions terriennes, comme aux idéaux de la République. Et si, pour le reste, nos convictions semblent à l’opposé l’une de l’autre, probablement l’un est-il moins à gauche qu’il ne le fait croire et l’autre moins à droite qu’il ne le laisse paraître. Plus que ses idées, c’est la façon de les mettre en scène que la cohabitation m’a permis d’admirer chez François Mitterrand. "Salut l’artiste!" m’est-il arrivé de penser en assistant à quelques-unes de ses prestations.".

Trópicos mais tristes

Nos obituários, a generosidade costuma abundar. Porém, quero crer que o sentimento de perca que a morte de Claude Lévy-Strauss desencadeou por todo o mundo tem uma genuinidade muito grande. Foi um homem que deu um notável contributo às Ciências Sociais.

No que me toca, passei a ver muitas coisas de forma diferente depois de ler o seu "Tristes Trópicos" e a minha compreensão do Brasil ficaria muito incompleta sem ter antes feito essa leitura.

Cem países

Este blogue acaba de ser visitado pelo seu 100º país, como pode ser constatado na estatística autónoma do "Flagcounter", ali ao lado. As Nações Unidas têm ainda mais 92 Estados, mas duvido muito que a popularidade do "Duas ou Três Coisas" acabe algum dia por chegar ao Butão, a Kiribati, a Palau ou a Saint Vincent and the Grenadines.

Mas lá que ter 100 países visitantes é um belo número, lá isso é...

Afeganistão

Espero bem estar enganado, mas a pírrica vitória de Hamid Karzai nas eleições presidenciais afegãs, depois da desistência do seu rival Abdullah Abdullah, afigura-se mais um alerta para a tormenta que aí vem do que um sinal de acalmia ou o prenúncio de uma sedimentação da situação, formalmente democrática, que as urnas recentemente desenharam.

As forças internacionais que, com toda a legitimidade, intervieram no Afeganistão, para tentar repor uma ordem que ameaçava a sua própria segurança, terão sofrido a conjugação de duas debilidades difíceis de superar e encontram-se agora numa situação que, por maior que seja a euforia alardeada pelos seus dirigentes, traduz a extrema dificuldade em que se encontram.

A primeira debilidade teve a ver com o facto da liderança da operação no Afeganistão ter cabido aos Estados Unidos, sob uma administração em Washington que foi incapaz de transformar a indiscutível razão que lhe advinha do 11 de Setembro numa autoridade com valor moral, com real capacidade congregadora de um mundo que, com razão, temia e teme a política desestabilizadora dos talibãs, a começar pelos seus próprios vizinhos do Golfo. Assuma-se ou não isto abertamente, a legitimidade da coligação internacional ficou desde logo fragilizada por este "pecado original", que lhe era alheio.

A segunda debilidade decorre directamente da primeira. Ao terem conseguido o prodígio de conseguir desequilibrar toda a região, pela continuidade da política "neutralidade colaborante" assumida ao lado de Tel-Aviv no conflito israelo-palestiniano, pela imponderada invasão ilegal do Iraque (para a qual arrastaram outros complacentes parceiros) e por uma política errática de alianças regionais, sem uma estratégia devidamente consensualizada, os americanos acabaram por abrir uma imensa "caixa de Pandora". Foi assim no Paquistão, como o foi no modo irresponsável como provocaram o vazio de poder em Bagdad, onde não cuidaram em gizar fórmulas mínimas de transição. Neste cenário subitamente desequilibrado, o Irão passou a ter, pela primeira vez desde há muito, uma formidável capacidade para se afirmar autonomamente na região, situação agravada agora pelo novo "leverage" que lhe é dado pelo seu potencial nuclear.

Agora, tudo isto está a sobrar para o "Ocidente", para uma NATO obrigada a viver, já quase com naturalidade, o seu posicionamento "out of area", isto é, para todos nós, cada um de acordo com as suas possibilidades. Qual é a solução? Verdadeiramente, ninguém sabe. "Deitar" mais tropas sobre a guerra, num terreno como o Afeganistão, lembra inapelavelmente o tempo em que os soviéticos por lá andaram e, do mesmo modo, o período do Vietnam. Só que, neste último caso, não havia petróleo na região, nem ameaça nuclear, nem vizinhanças imponderáveis para gerir. Restará, um dia, negociar. Com quem? Com os talibãs? Esperemos apenas que Karzai não venha a ser condenado a, mais cedo ou mais tarde, vir a fazer o papel de clone de Nguyen Van Thieu.

segunda-feira, novembro 02, 2009

Not so Big Mac

Aqui há uns anos, numa praia balcânica, uma amiga sérvia contava-me, com um triste sorriso, que, em 1999, ao tempo em que Belgrado sofria noites de pesados bombardeamentos aéreos americanos, logo que o dia raiava os operários regressavam ao trabalho para a construção da primeira loja do McDonald's na cidade. Era o retrato de uma trágica ironia, que dizia bem do mundo em que vivíamos.

Recordei isto ao ler, ontem, que a McDonald's fechou em Reykjavik, na Islândia, pelo facto da desvalorização da moeda local ter tornado caros e não competitivos os produtos que vendia.

Longe vai o tempo em que, para um país, ter uma loja de McDonald's era uma espécie de cartão de identidade de moderna sociedade de consumo. Por todo o mundo, deu-se cabo de edifícios lindíssimos para alojar essas fábricas de colesterol. Alguma patetice liberal, cuja autoria me escapa mas que deve estar próxima dos "neocons", chegou mesmo ao ponto de afirmar que, no plano dos conflitos armados, era muito improvável que países onde existissem McDonald's gerassem guerras entre si.

Tudo mudou. O capitalismo, de facto, já não é o que era. Até o McDonald's já fecha por força do mercado. Confesso que não verto uma lágrima.

Saramago

As polémicas com conotações políticas não são o forte deste blogue, como é sabido. Mas confesso que não resisto a dizer algo breve sobre o conflito que tem sido suscitado em torno de Saramago, a propósito da sua nova obra - "Caín".

Para afirmar três coisas.

A primeira, para deixar claro que não li o livro e que, pela temática que aborda, não me parece que ele venha a ingressar nas minhas prioridades de leitura, nos tempos (anos) mais próximos.

A segunda, para dizer que acho que José Saramago escreve muito bem, que já li coisas dele que me deram um grande prazer e que, como português, tenho um grande orgulho que a ele tenha sido atribuído o prémio Nobel da literatura. Como o poderiam ter tido Torga, Jorge de Sena, Sophia, Lobo Antunes ou Lídia Jorge.

A terceira, para expressar, alto e bom som, que continuo a achar de uma inqualificável infelicidade, num mundo como o de hoje, atitudes e comentários obscurantistas de certas pessoas, como Sousa Lara no passado ou Mário David há dias, diabolizando o escritor, num triste sectarismo político e numa manifestação de reaccionarismo religioso primário. Acontece que ambos são meus amigos pessoais, mas tais tomadas de posição, embora as possa compreender, não consigo respeitá-las - e não desconheço que seria bem mais consensual construir o final desta frase ao contrário. Mas é isto que eu penso.

Pousadas de Portugal


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(Alerta aos leitores: este post foi posteriormente rectificado. Leiam aqui)

De há muito que tenho o maior respeito pelo grupo hoteleiro Pestana, dirigido por Dionísio Pestana, um empreendedor de grande visão que soube transformar um núcleo de operação na Madeira numa das maiores - senão a maior - redes nacionais de hotéis, com expressão internacional. Fê-lo com capitais próprios, com imenso profissionalismo, com visão estratégica.
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No Brasil, durante vários anos, pude constatar e constantemente apoiar o alargamento da actividade do grupo, que se transformou numa imagem de marca da hotelaria portuguesa de qualidade - de que o magnífico Hotel Convento do Carmo, em Salvador da Bahia, é o seu melhor cartão de visita.

Já há uns anos, o Grupo Pestana obteve a concessão da Enatur, que dirige as Pousadas de Portugal, empresa onde o Estado português mantém, contudo, uma importante participação.

A rede Pousadas de Portugal é uma estrutura histórica. Criada em 1940, numa iniciativa de António Ferro, tinha subjacente uma lógica de promoção turística voltada para o mercado estrangeiro, com preços baixos (não admitia estadas de mais do que três noites consecutivas) e uma qualidade de serviço muito interessante, apoiada na exploração de valores gastronómicos nacionais. Era constituída por edifícios construídos de raiz, por outros adaptados e, com maior incidência nas últimas décadas, por edifícios históricos, os quais foram recuperados da ruína e do esquecimento, com fundos do orçamento público.

Sei bem do que falo porque, há muito que frequento com regularidade as Pousadas de Portugal, sendo que, pelas minhas contas, dormi até hoje em, precisamente, 41 dessas unidades, algumas delas entretanto já desaparecidas. Por isso, julgo ter algum "direito de utente" para me pronunciar sobre o que vi e sobre o que actualmente vejo.
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E hoje vejo, com grande desagrado, o grupo Pestana numa clara deriva no sentido de "ver-se livre" de algumas unidades cujo lucro não será aquilo com que contava, a alienar parte de um património que ninguém parece lembrar ter dimensões que estão muito para além das questões económicas, dimensões que, se o não foram, deveriam ter sido acauteladas no contrato de concessão, em eventual articulação de sustentação com as regiões turísticas e com as autarquias da região.
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As Pousadas de Portugal, para além do natural negócio que devem ser, são factores de equilíbrio regional, de polarização de circuitos turísticos, de conservação de valores de gastronomia local. Tais unidades hoteleiras constituíram sempre um orgulho para as populações locais e são também, goste-se ou não, um elemento de serviço público.
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Da mesma maneira que os Correios de Portugal ou a EDP são obrigados, por contrato, a levar as cartas ou a electricidade a zonas remotas do país, onde uma simples lógica económica recomendaria o imediato fechamento da operação, também as Pousadas devem ser vistas nessa perspectiva de utilidade pública, pelo facto de serem, em algumas áreas, o único suporte para alojamento turístico de alguma qualidade. Aliás será para isso, ao que julgo, que o Instituto de Turismo de Portugal permanece no Conselho de Administração da ENATUR. Caso contrário, o que estará lá a fazer? A servir de mero e silencioso "rubberstamp" legitimador das decisões do Grupo Pestana?
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O Estado português não deu a concessão ao grupo Pestana para assistir, impávido e cúmplice, a um arbitrário "downsizing" desse património, marcado por uma lógica exclusivamente economicista. Esta não é uma concessão qualquer. Há dimensões históricas a ela associadas, as quais, a meu ver, e por exemplo, são em absoluto incompatíveis com a simples e fria alienação de edifícios de valor arquitectónico insubstituível. Da mesma forma, escandaliza-me que a Enatur possa arrogar-se o direito, com prejuízo da dignidade da imagem das Pousadas de Portugal (que é uma marca nacional, de que não é proprietária, note-se), de subconcessionar certas unidades, em "franchising", a qualquer "pato bravo" hoteleiro, sem história nem credenciais na profissão, lavando depois as mãos para o modo como a exploração vier a decorrer. O que observei, recentemente, em unidades que continuam a manter a “imagem” da Enatur, constitui uma verdadeira vergonha, com espaços decorados à luz da saloíce dos novos proprietários, à moda da "pensão da Tia Anica"...

Vem isto a propósito do anúncio que acaba de ser feito do próximo encerramento da Pousada Barão de Forrester, em Alijó. Há poucos anos, a Enatur - sob proposta do Grupo Pestana e a complacência incompreensível do Instituto de Turismo - já tinha vendido (!!!) o edifício da Pousada de São Gonçalo, no Marão, uma jóia arquitectónica que remonta às origens do projecto das Pousadas. Nem uma folha de protesto então buliu, que se desse conta, por parte das Câmaras Municipais de Amarante e Vila Real. Antes, tinha já "ardido" Miranda do Douro. Agora, para os transmontanos, para que o "deserto" se torne completo, só resta que a Enatur "terceirize" (como dizem os nossos amigos brasileiros) a Pousada de Bragança.

Onde iremos chegar? O Instituto do Turismo de Portugal ou a Secretaria de Estado do Turismo não terão nada a dizer sobre isto? Uma palavra “lá em baixo” do meu querido amigo, Dr. Alexandre Chaves, operativo Governador Civil do Distrito de Vila Real, seria muito bem vinda.

domingo, novembro 01, 2009

Carta a um amigo

Meu Caro

Você acaba de entrar numa nova vida, e logo num tempo bastante difícil, em que muito se exigirá de si, dos seus conhecimentos e do seu bom-senso, da sua integridade e da sua força de vontade. Conhecendo-o bem, julgo ser "the right man in the right place" e, diria mesmo, "at the right time"- e você sabe de mim o suficiente para ter a certeza de que só digo isto porque sinceramente o penso. Atrevo-me mesmo a afirmar, não sem algum orgulho, que, até agora, você teve sempre uma boa escola.

Porém, como em tudo na vida, só na água se aprende a nadar. Ver os outros no jogo é muito instrutivo, até para evitar cometer alguns dos erros observados. Mas as coisas são diferentes quando se "está lá", quando se é o responsável, quando todos olham para si, para o bem e para o mal. Principalmente para o mal, como sabe.

Você começa agora. Numa bela frase que fez escola, Jaime Gama dizia que "não há uma segunda oportunidade para se criar uma primeira impressão". Tendo a concordar, embora não em absoluto, porque as imagens fixam-se diacronicamente no juízo das pessoas e o tempo ajuda a sedimentar a solidez de quem é realmente consistente. Você dir-me-á, com a sua proverbial modéstia, que isso o preocupa pouco e que, no essencial, quer apenas conseguir fazer bem aquilo que lhe propuseram. Mas, como já terá visto de forma muito crua, "em política, o que parece é", como dizia o manhoso de Santa Comba. É triste, mas é assim.

Para um observador desprevenido, a sua tarefa até pode parecer fácil. Mas você sabe bem melhor que muitos que, para além do que a opinião publicada ou comum intui, há aí desafios externos muito sérios pela frente, face à vontade de alguns de mudar o paradigma do processo colectivo, interessados que estão em assegurar a continuidade do respectivo poder, através da garantia lampedusiana de que "alguma coisa tem de mudar para que tudo continue na mesma".

Não quero parecer "patronizing", mas não resisto a deixar-lhe algumas notas: conselhos ou frutos da experiência, tome-os como quiser. Faço-o agora porque não terei nem necessidade nem ocasião de lhe dar quaisquer opiniões futuras, porque, como você e muitos outros bem sabem, é meu arreigado e inabalável hábito deixar deliberadamente de procurar ou frequentar quem assume funções elevadas.

Desde logo, tente rodear-se de gente que tenha a certeza de ser, simultaneamente, competente, fiel e crítica. E, se possível, que escreva um bom português, uma língua antiga em rápida extinção na nossa administração pública. Junte pessoas que tenham a liberdade e a coragem para lhe dizer aquilo que até pode não lhe apetecer ouvir, mas que é essencial que você ouça; embora se reserve sempre o seu direito de não concordar e decida fazer exactamente o contrário. Não hesite em mudar de opinião, quando os argumentos forem inteligentes e convincentes, mesmo se oriundos de colaboradores muito mais jovens. Sabe do que falo, claro...

Não se deixe nunca tentar por tiques de auto-suficiência ou de autoridade (que seriam estranhos em si, em qualquer caso), por reflexos de sobranceiro "déjà vu" ou por formalismos compensatórios da sua idade - como, ridiculamente, já vi emergir em (então) jovens figuras políticas, pouco à vontade com as suas novas responsabilidades. Em política, a idade que se tem é a da autoridade que soubermos transmitir, sendo a juventude, aliás, o único "defeito" que passa sempre com o tempo.

Atente bem nas lições do passado, porque nada começa hoje, embora a História nunca se repita, salvo para os que a lêem de forma preguiçosa ou dogmática. Procure decifrar bem a "agenda" de quem cruzar pelo mundo, perceba as suas motivações profundas, sem se deixar enredar em teorias conspirativas, mas igualmente sem cair em perigosas ingenuidades. Não se acomode a supostas inevitabilidades, não receie dizer "não" quando entender que isso é importante, não use "langue de bois", chame as coisas pelo nomes e não se importe de ficar isolado, nem tenha a tentação de ser simpático em matérias de Estado. O interesse do país está sempre acima dos nossos humores.

Claro que você também sabe que, à sua volta, há adulações que vêm por aí, com os "yes men" e as "yes women" que lhe darão a "música" agradável aos seus ouvidos, que acharão "genial" a entrevista que você percebeu que saiu menos boa, que dirão "o máximo" do discurso que fizer, por mais banal que lhe tenha saído. Relativize sempre tudo isso.

Seja muito firme, não dando, logo desde o início, o mínimo espaço para a sobrevivência funcional de distâncias derivadas dos tempos da carreira de onde você é oriundo (e onde agora não está inserido, lembre-se sempre!). Corrigir o erro, depois, será muito mais difícil e penoso. Exerça em pleno a sua autoridade, porque, como escreveu Balladur num recente livro, "le pouvoir ne se partage pas".
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Alguns, de forma mais ou menos explícita, tentarão preservar fatias de decisão que se habituaram a gerir, quase a seu bel-prazer. Corte-lhes as "vazas" e, estabeleça, desde o primeiro segundo, sem tibiezas e ambiguidades, as suas novas regras. É que se o "pacote" de responsabilidades passa a ser seu, toda a decisão também lhe cabe a si, na gestão como na definição das políticas. E esteja também atento aos curto-circuitos hierárquicos, essa insidiosa forma de se sustentarem influências "por cima" de si, com "shortcuts" de oportunidade. Sei bem do que falo e você também sabe como, no passado, foram tratadas, com êxito e algum gozo, algumas derivas dessa índole.

Mantenha e frequente os amigos de sempre, comporte-se com eles com a naturalidade habitual. Eles podem ser-lhe muito úteis na "leitura" da realidade exterior de que, forçosamente, ficará um pouco mais distante. E aí estarão, ao virar da esquina, quando se esgotar a transitoriedade das funções que agora vai ocupar. Eles serão a sua eterna e insubstituível "almofada" afectiva.

Agora, um assumido conselho: não projecte a ideia de ser "o homem" de ninguém, o "remote controle" de outras instâncias, uma figura tutelada, actor secundário à espera das deixas de outros. Sem incorrer na mínima quebra de lealdade ou de disciplina face à orientação de quem tem legitimidade para lha dar, perceba que há um palco que agora é apenas seu: dirija a peça, oriente sem tibiezas os artistas - e alguns são mesmo uns "verdadeiros artistas".... É que, das palmas ou dos apupos que se vierem a ouvir, você está condenado a só poder partilhar as primeiras.

De igual modo, seja totalmente livre: evite a tentação de caminhar para a construção de um qualquer proselitismo, para a criação de "equipas" de fiéis em seu redor, esse viciado mundo, tão típico da profissão que vai co-tutelar, cuja cultura dominante se apoia em esferas de influência, em mini-nepotismos conjunturais, feitos de atribuição arbitrária de cargos e funções, a troco de lealdades com preço certo - nas promoções ou nas colocações seguintes. Ouça amigos próximos, mas decida sempre sozinho. Trate bem toda gente, mesmo os mais "sinistros", mas apenas enquanto assim o merecerem. Quanto tal não acontecer, passe então a tratá-los como realmente merecem, sem contemplações ou moratórias. O tempo das indecisões só joga contra si.

Ah! e não se esqueça: ria-se, divirta-se, mantenha um bom ambiente no trabalho e trate as coisas com a leveza que se justifica, sem perder o humor e a capacidade de exercer ironia. Até sobre si próprio. E, nunca por nunca, caia na tentação de dizer que está a fazer um sacrifício, um serviço pelo qual o Estado e o país lhe devem ficar reconhecidos. Você é que deve estar grato a Portugal por lhe ter dado a honrosa possibilidade de o servir.

Meu caro, como diria o Sérgio Godinho, "este é o primeiro dia do resto da sua vida". E só há uma, lembre-se! E porque esta vida são dois dias, aproveite bem as noites! Não esqueça a família, não lhe atafulhe os sofás com papéis cor-de-rosa, pela noite dentro: saia, jante fora, divirta-se, beba um copo, fale com amigos de outras coisas que não política, viaje e leia muito. Pode crer que o mundo não vai parar, só porque você insiste em ser uma pessoa normal.

Não lhe vou desejar felicidades profissionais e políticas, porque isso seria redundante com o que você sabe que eu penso. Desejo-lhe saúde, alegria, vontade e sorte. O resto - inteligência, honestidade, sabedoria, rigor e dedicação - você já tem.

E mando-lhe um forte abraço de amizade, esperando agora só o voltar rever, com calma e sem agenda, daqui a quatro anos, para então lhe dar conta dos meus ócios na reforma. Aproveite o tempo bem! O seu sucesso será o nosso.

Francisco

PS - Vou oferecer-lhe um clássico do Gerald Kaufman, com mais de duas décadas, intitulado "How to be a Minister". Esclareço, para leitores menos atentos, que, sendo um livro inglês, "minister" significa, entre nós, "secretário de Estado". "Bien entendu"...

sábado, outubro 31, 2009

Lince

O país ficou a saber que o lince regressa à Malcata. Quando já se pensava que o animal tinha desaparecido por completo, até porque se não ouvia falar dele há muito, o esforçado empenho dos protectores da espécie vai recolocá-lo de novo no único habitat onde foi gerado e ficou conhecido, dando-lhe uma nova oportunidade para reproduzir homólogos e espalhá-los no seu ambiente comunitário próprio. Fugidio, habituou quem escrutinava os seus passos com atenção à imagem de um animal palmilhador de montes e vales, só se dando bem entre os seus, que protege e ajuda a alimentar, num sentido gregário muito comum à espécie, reagindo quase sempre com grande desconfiança à aproximação de estranhos. De porte pequeno e ladino, mas sem as defesas de inteligência que caracterizam os animais de qualidade superior, fragilidade que quase levou à sua extinção entre nós, o nosso lince vai agora tentar reocupar os espaços da sua geografia tradicional, na luta eterna pela sobrevivência, a qual, no essencial, passa pela satisfação quotidiana das necessidades que lhe são próprias. O tempo já provou que o lince apenas consegue assegurar tal sobrevida dentro da área onde tradicionalmente se move, por lhe faltarem certas qualidades de agilidade e adaptação, em absoluto indispensáveis para vingar noutros terrenos. Mas porque, como o passado provou, o animal acarreta consigo algumas derivas predatórias, a que quem anda pelas suas zonas se verá forçado a estar atento, corre sempre o risco de vir a ser alvo de actos isolados de reacção cinegética, susceptíveis de porem em causa todo o esforço feito na sua recuperação. O regresso do lince à Malcata é, indiscutivelmente, uma significativa notícia do nosso mundo animal neste Outono.

Escritas

As horas que a vida me deixa livres são muito poucas para a leitura de blogues. Quando, durante um certo tempo, tive o meu período de "osceosidade" (estado de espírito só para iniciados, que não vem nos dicionários), passei muitas noites a saltitar pela blogosfera. Quem sabe se não é ainda a escondida memória desses tempos que hoje me afasta dos blogues? Apenas de quando em vez, passo, sem o menor critério, por um ou outro blogue, para o qual alguém me chama a atenção, sem rotina de consulta a "favoritos", que teimo em não registar, quase sempre levado por uma espécie de pesquisa arbórea, remetido de um sítio para outro e daí para outro ainda, até que me canso e recolho a penates.

Hoje calhou-me passar por um blogue de que já aqui falei, escrito "a sério", por quem sabe escrever - não este escrevinhar despretencioso e ligeiro, mas a solidez profunda de um texto literário.

Ler "As cidades em que vivo", escrito no seu "Tim Tim no Tibete" pelo embaixador e escritor (ou será o contrário?) Luis Filipe Castro Mendes, foi um bálsamo nesta tarde de sábado parisiense. E serviu, do mesmo modo, como recordação dos dias que ambos passámos juntos em Delhi e em Budapeste, das muitas horas em livrarias ou em charlas soltas à volta do copo de velha amizade, como também algumas vezes aconteceu, já há muito tempo, aqui por Paris e mais tarde por Viena. Nesse texto fala também do Rio, como podia falar de Luanda, cidades que partilhamos sentimentalmente, cada um à sua maneira, sem nunca por lá nos termos cruzado.

Leia-no e, garanto, ficarão eternos clientes. Como imagem, deixo o Ganesh, o deus dos escritores, como ele.

Obrigado, António Costa

O dia em que é anunciado um novo governo é a data certa para dizer, alto e bom som, que considero ter sido um privilégio ter como primeiro-m...