quarta-feira, dezembro 21, 2011

Coreias

Em 2003, quando representava Portugal na OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), em Viena, fui convidado pelo governo coreano para pronunciar, em Seul, uma conferência sobre um tema que pode parecer algo etéreo para os leitores deste blogue: "OSCE's confidence and security bulding measures". 

Essa era uma especialidade que eu entretanto desenvolvera na minha involuntária "osceosidade" vienense, que levara aquela organização, sem o menor encargo para o Estado português, a "oferecer-me" como palestrante especializado por vários seminários internacionais sobre questões de defesa e segurança, da Polónia ao Casaquistão, do Egito ao Japão, da Itália à Jordânia. 

Tratava-se de transmitir a experiência ganha pela OSCE no seu quadro de cooperação euroasiática, em matéria de diálogos políticos "geradores de confiança", em situações pós-conflito (ou, mais raramente, de mera prevenção de conflitos), com vista a operações de "learning lessons", neste caso para tentar aplicar essa experiência no quadro da tensão "sul-norte", que prevalece nas Coreias desde o confito dos anos 50. Estava-se então no tempo de alguma esperança nos esforços feitos no âmbito dos "six-party talks" (conversações entre as duas Coreias, com inclusão da China, da Rússia, do Japão e dos EUA), para tratar o sensível problema nuclear norte-coreano.

O debate em Seul foi extremamente interessante e instrutivo, em especial para melhor perceber a peculiar atitude chinesa (e também russa) no processo, bem como para definir as distâncias estratégicas, muitas vezes pouco percebidas mas bem presentes, entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos, assunto de que já falei aqui.

À parte o seminário, houve a possibilidade de uma deslocação, entre o turístico e o político, ao histórico "paralelo 38", a linha divisória do trágico conflito entre as duas Coreias. Sendo a fronteira mais tensa do mundo, há em seu torno uma espécie de grande "teatro", alimentado pelos sul-coreanos e pelas tropas norte-americanas presentes no local, com óbvia cumplicidade dos coreanos do norte. Visitaram-se túneis e postos de observação, de onde se podia ver uma gigantesca bandeira norte-coreana e, através de binóculos, se detetavam, como figuras raras, militares das tropas do outro lado. Foi-se até à sala das históricas conversações norte-sul, bem como ao limite de uma linha de comboio interrompida há muitos anos, pela Coreia do Norte, sendo-nos mostrada uma moderna e completamente deserta estação de onde, como nos foi dito, se um dia houver paz e tiver acabado o bloqueio da fronteira, um comboio poderá partir numa longa viagem euro-asiática que irá acabar em... Paris, tido num grande mapa como o extremo ferroviário ocidental da Europa. A uma simples observação minha, sobre a razão pela qual essa linha mirífica não prosseguiria até Lisboa, desencadeei nos meus interlocutores sul-coreanos um imediato e preocupado nervosismo, com imediata promessa (!) de irem rever o mapa. A extrema lógica asiática tem destas coisas...

Mas, no local, há outras "lógicas", tão ou mais complexas do que esta. Um dos pontos da agenda incluía um "briefing", feito pelas tropas americanas aí estacionadas, sobre a situação na linha de fronteira. Convém que se diga que, para a Coreia do Norte, a situação de guerra com os EUA mantém-se, formalmente. O oficial americano parecia uma caricatura cinematográfica, com um típico corte de cabelo paralelipipédico, que lhe dava um ar involuntariamente divertido. O seu discurso estava recheado de "clichés" da vulgata da "guerra fria" revisitada (ao tempo da minha visita preponderava em Washington o senhor George W. Bush), que divertiram imenso o pequeno auditório, recheado de especialistas internacionais que tinham das coisas do mundo alguma sofisticação mais. Recordo-me de nos ter sido explicado, com detalhes biográficos e curiosidades pormenorizadas, muito orientadas para um auditório turístico, quem era o lider norte-coreano Kim Jong-Il (que há dias morreu). As restantes informações relevavam de uma espécie de versão para atrasados mentais da série editorial "The complete Idiot's guide", ideologicamente revista pelas Seleções do Reader's Digest nos anos 50.

A certa altura da palestra, o militar contou que, todas as manhãs, grandes altifalantes emitiam, em direção ao sul, hinos e canções patrióticas norte-coreanas, que faziam já parte da rotina dos dias no local. Porque o "briefing" estava a ser uma maçada de que todos pareciam querer ver-se livres, quando, no fim da preleção, nos interrogou sobre "any questions?", registou-se um silêncio esmagador e de alívio. Foi então que decidi, para espairecer o ambiente, "quebrar a loiça" e, com uma falsa ingenuidade, perguntei: "Os hinos e as canções patrióticas são, como nos disse, a regra dessas emissões matinais. Gostava que me respondesse a uma questão: qual seria a sua reação se, numa dessas manhãs, em lugar desse tipo de músicas, os altifalantes norte-coreanos transmitissem uma canção de Britney Spears?". O homem bloqueou e olhou-me siderado. Acrescentei: "Que tipo de conclusões políticas retiraria desse facto?". O militar americano ficou muito sério, fixou-me de uma forma pouco simpática, pousou a varinha com que apontara o "power-point" e disse: "The briefing is over". Uma onda de gargalhadas, mas apenas dos visitantes estrangeiros, ecoou na sala.

Decididamente, o humor não é a atitude mais apreciada nas zonas tensas de conflito.

A democracia e o "The Economist"

A "Economist Intelligence Unit" (não sei se ainda anda por lá o meu amigo Mark Hudson) do "The Economist" faz este ano a sua tradicional "medição" do estado da democracia e das liberdades em 165 países independentes e dois territórios, atribundo-lhes quatro categorias: democracias plenas, democracias com falhas, regimes híbridos e regimes autoritários. Os critérios são os seguintes: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades cívicas.

Este ano, a "bíblia" do neoliberalismo baixou Portugal para 27º lugar (éramos 26º), colocando-nos no grupo das "democracias com falhas". A principal razão, explica o relatório, deveu-se a erosão da soberania e da responsabilidade democrática, associada aos efeitos e às respostas à crise da zona euro. O relatório destaca ainda que, em alguns países, já não são os governos eleitos que definem as políticas, mas sim os credores internacionais, como o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional. A severidade das medidas de austeridade contribuiu, no entender do estudo, para enfraquecer a coesão social e diminuir ainda mais a confiança nas instituições públicas.

aqui falei, há tempos, desta questão, que é, de facto preocupante. É que, para além de alguma arrogância "patronizing" que subjaz a este tipo de avaliações, o relatório não deixa de tocar nalgumas feridas que a atual situação abriu em várias democracias europeias. Mas também cria uma dúvida: afinal, esta alegada quebra de democraticidade da situação em países como Portugal não é derivada pela adoção de políticas de austeridade e de estrito controlo macroeconómico por parte de entidades internacionais, como aquelas que o "The Economist" sempre defendeu? Em que ficamos? 

terça-feira, dezembro 20, 2011

Carlos da Veiga Ferreira

Conheço e sou amigo do Carlos da Veiga Ferreira há muitos anos. Era ele então um pouco ortodoxo funcionário do Ministério da Indústria onde, num gabinete dirigido por essa saudosa figura que foi Aurora Murteira, estabelecia, lado a lado com o Frederico Alcântara de Melo, uma operativa ponte com as Necessidades, onde eu acabara de entrar. Lisboa é uma grande aldeia e, logo que nos conhecemos, percebemos que tínhamos amigos em comum, o menor dos quais não era esse federador de afetos que dá pelo nome de António José Massano.

Pouco tempo depois, vim a conhecer o outro lado do Carlos: o editor. Primeiro com o Carlos Araújo, depois tendo a seu cargo exclusivo a magnífica Teorema, uma editora culta e de bom gosto, onde brilhou a obra de Jorge Luis Borges, mas onde também publicou outros grandes autores, como Martin Amis ou Saul Bellow. Em noites de conversas com ele, pelo mundo, aprendi a apreciar o seu raro "feeling" para a descoberta de nomes que viriam a ser êxitos editoriais em Portugal. Apesar das minhas promessas, nunca o acompanhei numa visita à feira do Livro de Frankfurt, um dos meus (poucos) sonhos não concretizados de vida.

Há uns anos, num restaurante de Lisboa, vi o Carlos à distância, muito engravatado, numa conversa de onde me pareciam transparecer negócios. Eu estava a jantar com amigos, entre os quais o empresário e homem da imprensa João Amaral e recordo-me de ter comentado: "O Veiga Ferreira está com ar de quem está a vender a Teorema". O João Amaral não conhecia então o Carlos. Fui ter com o Carlos. Estava, de facto, a vender a Teorema, editora que, no entanto, continuou a dirigir.

O tempo passou e a vida deu algumas voltas. A Teorema, e o Carlos com ela, acabaram absorvidos no imenso conglomerado editorial da Leya, onde, curiosamente, o João Amaral é hoje uma figura proeminente. Mais tarde, soube que o Carlos Veiga Ferreira abandonou a Teorema e a Leya, que hoje a tutela. Por acasos da vida, ainda não falámos, desde então.

Há dias, num noticiário cultural, vi que o Carlos criou, há meses, uma nova editora: a Teodolito. Perguntado, por alguém, sobre a razão do nome, o Carlos respondeu, desconcertante como sempre: "Havia um poeta meritório, que já morreu há muito tempo chamado António de Sousa e mostrou vários poemas ao Herberto Helder. A determinada altura, havia um verso que dizia qualquer coisa ‘noite inconsútil’ e o Herberto perguntou-lhe: O poema é giro mas António você sabe o que é ‘inconsútil’ ? E o António respondeu: ‘Não sei nem me interessa mas é uma palavra muito bonita.’ Eu sei o que é um teodolito e foi por causa disso e também remete para um texto brilhante do Luiz Pacheco que se chamava ‘O Teodolito’ ".

Da Teorema à Teodolito, vê-se que o "bichinho" editorial do Carlos  da Veiga Ferreira não desarma. E o seu humor também.

"Contingency planning"

Devo dizer que, no que me toca, fiquei completamente indiferente à notícia de que o Foreign Office tinha um "contingency plan" para os seus cidadãos, para o caso de poder haver uma situação extrema de crise em Portugal e em Espanha. 

Os países e as diplomacias mais organizadas - e o serviço diplomático britânico é "apenas" o melhor do mundo - fazem exercícios constantes de planeamento para situações extremas, em todos os cenários geopolíticos, o que lhes permite terem uma noção quantificada e qualificada dos meios que têm de mobilizar em situações de emergência. Isso é válido para uma crise financeira, como o é para uma convulsão social, para um terramoto ou um acidente nuclear.

Esta "obsessão" com a organização retira, a esses países, a "graça" de testarem a capacidade de improviso das suas gentes e estruturas - faculdade em que países como Portugal são mestres. Verdade seja que, no caso português, existe, desde há alguns anos, uma unidade de "emergência consular" no MNE que já criou uma certa massa crítica, que lhe permite orientar-se por rotinas já seguidas, com êxito, no passado.

Interessante foi ver o nosso paupérrimo "jornalismo" televisivo, que tem de inventar o inimaginável para encher de "chouriços" (a expressão é do jornalismo, não é minha) a mais de hora e meia dos seus lamentáveis telejornais, a entrevistar cidadãos ingleses ao sol algarvio, perguntando-lhe, patrioticamente, se não temiam um colapso do sistema bancário português. Esses britânicos, serenos e educados, pouparam-nos à humilhação de revelar que, com toda a certeza e naturalidade, utilizavam as suas instituições financeiras além-Mancha e, com probabilidade, não tinham confiado as suas poupanças ao BPN ou ao BPP...

Tratado

Para quem tiver paciência e gosto por estas coisas, aqui fica o link para o (uma discutível tradução do) projeto de novo tratado intergovernamental europeu, desde agora em negociação.

Comentários ao correr da tecla que o texto me sugere:
  • o texto é curto, o que é muito bom.
  • ressalta do projeto um tom "inclusivo", por forma a abranger os países da zona euro e aqueles que só são parte da UEM. Tudo o que aponte para a inclusividade é bom para a Europa. E para nós nela.
  • é dada uma razoável latitude quanto à sede jurídica da inclusão da "regra de ouro" sobre o défice, o que pode facilitar a sua aprovação em muitos países.
  • continua a não resultar claro como será possível um tratado intergovernamental vir utilizar as instituições comunitárias (Conselho europeu, comissão e tribunal de Justiça), sem um consentimento unânime. De facto, sem uma aquiscência do Reino Unido, isso será impossível. Mas a predisposição de Londres a ser "observador" do processo é uma boa notícia para os restantes subscritores. Resta saber a que "preço", nomeadamente nas próximas "perspetivas financeiras" (quadro orçamental plurianual)...
  • é dúbia, e juridicamente pouco consistente, embora por isso aparentemente inóqua, a referência ao pacto "euro plus", que se pretendia um reforço do pacto de Estabilidade e Crescimento, através do "método aberto de coordenação" (que, diga-se, tanto se criticou à "agenda de Lisboa" de 2000). Será apenas para não deixar cair, por completo, uma "construção" que tanto agrada a um Estado membro cujo nome, como Cervantes dizia de um certo lugar da Mancha, no "Dom Quixote", não me quero lembrar?
  • as "cimeiras do euro" afinal já não reunem mensalmente, como fora anunciado no dia 9. É de elementar bom senso... Às vezes, penso que quem vive aqui no centro da Europa não tem a noção do que representa, em termos de esforço, uma deslocação a Bruxelas, quando se está num país geograficamente periférico. As vídeo conferências para alguma coisa existem, embora tenham a "desvantagem" de não garantirem conferências de imprensa de exploração dos "sucessos".
  • a entrada em vigor do tratado, após o nono subscritor, parece uma medida com sentido, forçando de forma razoável os restantes. 
Algumas dúvidas que o texto (e a filosofia do mesmo) me suscita não podem ser abordadas neste âmbito.
    Devo dizer que continua a não ser, para mim, muito clara a razão técnica por que não se optou pelo modelo de uma "cooperação reforçada", que, nos termos do atual tratado, se poderia fazer (a partir de oito Estados membros) sem a presença do Reino Unido e teria a importante vantagem de não confrontar o quadro institucional. Mas devo ser eu quem está a ver mal, por ter já "perdido a mão" destas coisas europeias...

    Treaty

    Começou hoje a negociação do texto fundador da nova "União Orçamental", o tratado intergovernamental lançado em 9 de dezembro e que os mais otimistas entendem poder ficar concluído até março.  

    Como é sabido, o Reino Unido colocou-se inicialmente fora do processo, embora posteriormente tenha vindo a juntar-se a ele, mas apenas como observador. O mais irónico de tudo isto, que também dá nota do possível destino futuro das línguas oficiais no quadro europeu, é que a discussão se fará exclusivamente sobre uma única versão de projeto do tratado, redigida em... inglês.

    segunda-feira, dezembro 19, 2011

    Jogo eletrizante

    O jogo era péssimo. O futebol daquele país estava longe de proporcionar grandes espetáculos e a transmissão televisiva, a preto e branco, com escassos meios e uma ainda mais escassa técnica, era de uma imensa pobreza. Mas, com a chuva que caía, pouco mais havia para fazer na residência portuguesa, naquela cidade de um país em guerra, onde eu fora visitar um colega em posto e já tínhamos colocado a conversa em dia. Com uma cerveja a acompanhar, a emissão ajudava a passar as horas, até porque o meu avião de regresso era só na tarde do dia seguinte.

    A certo ponto, a imagem televisiva estragou-se, por segundos, regressando depois à sua qualidade habitual. Mas por pouco tempo. A partir daí, sem regularidade temporal, o incidente repetia-se. Ver o jogo tornava-se um exercício difícil. Ah! e, naquele país, só havia um canal televisivo, claro. 

    - É sempre isto! Com estas variações de luz, estragam-se os aparelhos todos. Uma arca já foi à vida e o frigorífico está com problemas. Já coloquei estabilizadores de corrente, mas não adianta. E, sabes?, ainda eu tenho a sorte deste ser um acesso elétrico que me foi dado pela polícia. É um fio que liga à esquadra, que fica ali atrás. O comandante é meu amigo e foi ele mesmo quem sugeriu podermos fazer uma ligação direta, para poder beneficiar do gerador deles, quando há falhas gerais de energia. E o "quarto andar"* nem sabe o que poupa! Imagina agora o que sofre o resto da gente desta cidade!

    Eu continuava a tentar olhar o errático écran e perguntava-me se Lisboa alguma vez tinha consciência das dificuldades com que se defrontavam diplomatas e outro pessoal destacado, despachados para  postos recônditos, perdidos pelo mundo, sujeitos a privações constantes, à  insegurança e às doenças típicas dessas terras, que muitas vezes os obrigavam a separar-se das famílias. Tendo essa gente, como gozo supremo, numa tarde de chuva, jornais atrasados chegados pela "mala", ou um livro e um disco como os que eu lhe levara. E, claro, transmissões de futebol medíocre e outros programas de nível congénere, acompanhados de uma, duas, três, mil cervejas, para almofadar o quotidiano. 

    Um velho empregado entrou na sala, para perguntar se queríamos (claro!) mais uma cerveja. Ao passar pela televisão, com as sucessivas interrupções de imagem, deixou cair:

    - Eles hoje devem ter muitos trabalhos, patrão.

    O meu colega terá notado o meu olhar perplexo, face ao comentário, e esclareceu, vi que um pouco embarçado:

    - Aí o meu pessoal, que sabe das entradas e as saídas na esquadra da polícia, acha que algumas destas quebras na luz são devidas aos choques elétricos durante os interrogatórios aos "do inimigo". Se calhar têm razão, sei lá! Não posso perguntar-lhes, não é?

    Concentrou-se na televisão, irritado:

    - C'os diabos, ao menos os polícias podiam gostar de futebol...

    * Nome pelo qual os diplomatas designam a administração do MNE

    Mario Draghi

    É muito interessante observar a diferença de atitude, em termos de apresentação pública das coisas, entre o atual presidente do Banco Central Europeu, o italiano Mario Draghi, e o seu antecessor, o francês Jean-Claude Trichet. 

    Há cerca de dois meses ouvi ambos falar em Paris, num seminário fechado à imprensa, e fiquei com a impressão (errada, pelos vistos) de que ambos seguiam um firme guião, que já pudera detetar numa conferência do vice-presidente do BCE, Vitor Constâncio. Hoje, ao ler a entrevista que Draghi dá ao "Financial Times", mudei essa ideia.

    Draghi começa a afirmar uma linha pública que, não se afastando da proverbial prudência da instituição, analisa cenários que Trichet recusava, como é o caso da possibilidade do fim do euro. Mais do que na esfera política, eu habituei-me a ter em conta muito particular estas "nuances" de discurso deste tipo de banqueiros que, como é sabido, acarretam muitas vezes consigo (e eles sabem isso melhor que ninguém) consequências no comportamento dos mercados. Um governador de um banco central (e o BCE não é um qualquer banco central) nunca diz nada por acaso e Mario Draghi tem revelado ser um homem altamente qualificado e preparado. Só que - e o defeito é meu, com certeza -, eu ainda não entendi até onde Mario Graghi quer chegar com a adoção deste diferente discurso. Mas vou continuar a tentar perceber, até porque isto não é indiferente para um país como o nosso.

    domingo, dezembro 18, 2011

    O secretário-geral

    Na grande maioria dos ministérios que, por todo o mundo, se ocupam das relações externas existe a figura do secretário-geral. O leque de funções dos secretários-gerais varia bastante de país para país, podendo a figura surgir no cume da formulação substantiva das políticas até a um modelo que assenta na sua preeminência na organização e na gestão superior da "casa". (Mas é sempre, convém deixar claro, uma entidade muito diferente daquelas que, com a mesma designação, existem noutros ministérios.)

    Em Portugal, o embaixador que exerce as funções de secretário-geral tem um papel muito importante como "chefe da carreira" e como ligação desta ao poder político que o nomeou. A sua atividade acarreta consigo uma imensa dose de responsabilidade, que se objetiva nas propostas das pessoas que vão ocupar cargos no exterior ou de chefia interna, nos processos de promoção e na muito difícil preservação de uma cultura diplomática, para compensar a transitoriedade dos ciclos políticos. Pelo secretário-geral passa muito daquilo são as carreiras dos funcionários, a alocação de principais meios financeiros, materiais e de recursos humanos. Isso faz com que, com frequência, ele seja como que uma espécie de "muro das lamentações", perante a disponibilidade limitada dos meios existentes. E, por essa mesma via, o secretário-geral é, também muitas vezes, o bode expiatório do mal-estar de algumas decisões, gerando frustrações e desânimos num corpo profissional cuja distribuição pelo mundo tem especificidades que não são comuns a outras carreiras assentes em Portugal..

    A experiência mostra que o lugar de secretário-geral é muito "feito" pelas personalidades que o ocupam, porque há uma margem da função que é desenhada através da autoridade que cada um consegue criar e pelo modo como os embaixadores que ocupam o cargo se estabilizam no quadro interno de poder. Conheci secretários-gerais muito diversos, com estilos quase opostos e que, como é óbvio, deixaram marcas muito diferentes na memória da carreira.

    Até meados dos anos 80, o gabinete do secretário-geral do MNE situava-se no "terceiro andar" do palácio das Necessidades, o andar do poder, onde está o gabinete do ministro e, com variações, os de alguns secretários de Estado. Era uma sala muito ampla, com um quase idêntico espaço destinado ao seu chefe de gabinete e secretariado, naquilo que foi uma antecâmara que tinha sido testemunha de muito da história da casa.

    Nesses anos 80, um novo ministro chegou ao MNE e o secretário-geral da época fez-lhe o "tour" das principais instalações. A certo passo, mostrou ao ministro o gabinete que ele próprio ocupava, suscitando no novo chefe da diplomacia comentários de admiração sobre a grande dignidade do espaço, com um tom que se anunciava vagamente cobiçoso. Gentil mas naif, o secretário-geral terá dito qualquer coisa como "o meu gabinete está naturalmente à sua disposição, senhor ministro". Algumas horas passaram e, ao final da tarde, o ministro terá decidido levar à letra a delicada disponibilidade manifestada pelo secretário-geral e deu-lhe instruções para procurar novas instalações para se alojar, porque pretendia dar um destino diferente ao gabinete que, por muitas décadas, fora ocupado pelo "chefe da carreira".

    Nos tempos que correm, o secretário-geral do MNE está já instalado com toda a dignidade, embora fora do tal "terceiro andar". Na data de hoje, o seu gabinete vai receber um novo titular, um embaixador que nos vai representar a todos nós e a quem desejo, com a sinceridade da muita amizade, a maior sorte. É que o novo secretário-geral vai exercer funções num contexto restritivo muito particular, num tempo de grande exigência. A sua sorte será a nossa sorte.

    sábado, dezembro 17, 2011

    José Fernandes Fafe

    Os diplomatas que investem a sua vida numa longa e exigente carreira que, apenas para alguns, culmina na ascensão à chefia de uma missão, com a categoria de embaixador, não veem com muito bons olhos, e julgo que compreensivelmente, a nomeação de embaixadores "políticos". Estes foram em algum significativo número no passado, em especial após a Revolução de abril, sendo que, nos tempos mais recentes, a frequência desse tipo de nomeações caiu muito e ficou centrada em lugares de perfil mais especializado. Mas, para sermos honestos, há que dizer que algumas dessas personalidades exteriores que passaram pela carreira - na minha pessoal opinião, apenas uma pequena minoria - constituiram-se como um real valor acrescentado para o serviço diplomático.

    Há um nome que passou pela carreira diplomática, como embaixador "político", que sempre mereceu o meu maior respeito, uma figura moral e um grande homem de cultura, cuja ação diplomática trouxe um evidente contributo para a defesa e promoção dos interesses de Portugal, nos quatro postos onde desempenhou funções. O nome é José Fernandes Fafe. Tenciono, daqui a algum tempo, falar aqui sobre um importante livro que escreveu sobre as relações com o Brasil, mas hoje vou apenas contar uma história leve, com ele ocorrida em Angola.

    Estávamos na primeira metade dos anos 80. Chefiava a nossa missão em Luanda José Stichini Vilela, como encarregado de negócios, no intervalo entre dois embaixadores. Fernandes Fafe deslocara-se a Angola, vindo de S. Tomé, na qualidade de embaixador itinerante para os países lusófonos, acompanhado do professor Luís Filipe Lindley Cintra, outra magnífica figura da cultura portuguesa, para contactos no âmbito universitário. Stichini Vilela convidou, naturalmente, Fafe e Cintra para jantar, na véspera do seu regresso a Lisboa. Foi para todos os presentes uma conversa com imenso interesse, com dois interlocutores extraordinários, duas personalidades serenas e complementares, que muito nos enriqueceram, num tempo em que, em Luanda, se vivia algum isolamento. Despedimo-nos dos convidados, depois do jantar, desejando-lhes boa viagem para Portugal.

    No dia seguinte, fomos informados que o voo diário da TAP para Lisboa havia sido suspenso e que os visitantes teriam de ficar mais uma noite no hotel. O então cônsul-geral português, Fernando Andresen Guimarães, tomou a iniciativa de organizar um novo jantar em sua casa, incluindo os convivas da noite anterior. Nova noitada de "bom papo", como dizem os brasileiros, e nova despedida coletiva a Fernandes Fafe e Lindley Cintra.

    A surpresa viria na manhã subsequente. Afinal, também nesse dia, por uma qualquer razão, o voo da TAP não se realizaria. Eu era primeiro-secretário da Embaixada e, com gosto, propus-me fazer em minha casa um terceiro jantar aos nossos visitantes. Recordo-me que foi uma noite igualmente agradável, finda a qual brincámos com a possibilidade do voo também não ter lugar no dia seguinte. 

    À despedida, Fernandes Fafe voltou-se para aqueles que haviam sido os seus sucessivos anfitriões e perguntou: "Os meus amigos gostam de Raymond Chandler?". Julgo que todos dissemos que sim, no meu caso porque fui um fanático da literatura policial. "E estas três noites não lhes fazem lembrar Chandler?". Ficámos perplexos, sem resposta, não percebendo onde queria chegar com a questão. Com um sorriso, Fernandes Fafe acrescentou: "então não se lembram do livro dele, do "The long goodbye" ("O longo adeus?")?

    Deixo aqui um forte abraço para o meu amigo (e colega), embaixador José Fernandes Fafe, no termo de um ano que sei ter-lhe sido bastante difícil.

    Notícias do défice

    No "Telejornal", transmitido pela RTP internacional, à hora de almoço de hoje, um importante direto deu-nos o privilégio de ouvir parte do discurso de posse do novo presidente da Federação Portuguesa de Futebol.

    Imagino a inveja dos seguidores da BBC World por nunca terem tido - nem nunca irem ter, estou certo - a fantástica oportunidade de assistirem, num justificado direto, às palavras do presidente da britânica Football Association, em idêntica cerimónia.

    Felizmente que ainda há países felizes, onde o sentido de serviço público da comunicação social prevalece.

    sexta-feira, dezembro 16, 2011

    Eduardo Lourenço

    Foi ontem anunciado que o prémio Pessoa deste ano distinguiu Eduardo Lourenço. Já por aqui falei, por várias vezes, deste português exemplar, residente em França, que a todos nos tem ajudado a pensar o nosso lugar no mundo e. muito em especial, na Europa. Pode aliás dizer-se, sem grande receio que alguém nos desminta, que Lourenço é o único intelectual português com um discurso coerente e estruturado sobre Portugal e a sua inserção no continente europeu. O que, sendo para ele um elogio, não deixa de ser inquietante para o país.

    Por tudo isso, não vou, nesta data em que apenas envio um forte abraço ao professor Eduardo Lourenço, deter-me muito sobre a sua figura. O que penso dele e do muito que lhe devemos disse-lho numa simples homenagem que, há semanas, organizei em sua honra na embaixada.

    Mas vou contar uma história, passada com ele antes desse jantar, de que foram testemunhas Vasco Graça Moura e Guilherme Oliveira Martins. Espero que ele não leve a mal que a conte, porque ela apenas revela a juventude saudável de um homem sem idade.

    Lourenço chegou já sobre a hora do jantar, depois dos restantes convidados. Pediu-nos desculpa pelo atraso (que, na realidade, não existia) e explicou que acabava de chegar de Saint-Denis, nos arredores de Paris, onde fora encontrar Manoel de Oliveira, que aí filmava num estúdio onde se reproduzia uma rua do Porto (!). 

    Um de nós perguntou-lhe a razão da deslocação. Curiosidade de ver Oliveira a filmar? Eduardo Lourenço deu uma daquelas gargalhadas contidas que lhe são típicas e, com uma jovialidade que só se ganha com a idade, revelou: "A verdade é que me tinham dito que o Oliveira estava, hoje, a filmar com a Jeanne Moreau e a Claudia Cardinale. E eu tinha curiosidade de ver, ao vivo, as duas senhoras". E viu ?, perguntámos. "Não, já tinham ido embora e acabei por pagar uma conta calada de taxi..." 

    500

    São quinhentos, desde hoje, os amigos que se inscreveram para receberem notícias dos posts que vão sendo publicados neste blogue, como se pode ver na coluna ao lado. 

    É muito grato sentir que o que escrevemos pode merecer algum interesse, mesmo se este tipo de intervenção não tem pretensões a situar-se muito para além da espuma dos dias.

    quinta-feira, dezembro 15, 2011

    Ainda Paulo Coelho



    A obra do escritor brasileiro Paulo Coelho, pessoa de quem aqui falei e que vive em Paris grande parte do seu tempo, é vista com algumas reticências, e até sobranceria, por parte de muitos amigos meus do Brasil. Isso não obstante ele integrar já a prestigiada Academia Brasileira de Letras e, a grande distância, ser o autor brasileiro com maior sucesso editorial em todo o mundo.

    Sinto, contudo, que essas pessoas ficam desconfortáveis com a ideia de que Paulo Coelho possa ser identificado, pelos estrangeiros, com um escritor representativo da moderna literatura brasileira.

    A esses amigos, eu recomendo que tenham uma atitude idêntica àquela que, ao longo da vida, sempre adotei em relação a um grande produto da nossa exportação, que não aprecio, o Mateus Rosé: não consumo mas promovo sempre com o maior empenho, por ser um produto nacional. E até ofereço em casa.

    Voltando a Paulo Coelho, recomendo sobretudo que não digam a já clássica mas frágil frase: não li e não gosto.

    Sortido mediatico

    "Deteta-se nas curvas um ligeiro excesso de acontecimentos que sao talvez o sinal da sua presenca, mas tambem nao se pode excluir que se possa tratar, simplesmente, de flutuacoes estatisticas emergentes por azar do ruido de fundo".

    Uma algo longa hospitalizacao, com imobilizacao, da-nos tempo para ler sobre tudo. Ao passar ontem os olhos pelo "Le Figaro", dei-me conta de uma pagina dedicada, em exclusivo, ao bosao de Higgs, a famosa particula cuja (possivel) descoberta excita os especialistas, como o demonstra a descricao inspirada de um deles no jornal, que o paragrafo anterior reproduz.

    Quando era jovem, havia as vezes la por casa uma revista chamada "Science & Vie", que complementava, julgo que com bastante mais rigor, as novidades cientificas que as "Selecoes do Reader's Digest" tambem nos traziam. Era um tempo em que as maravilhas da ciencia tinham grande popularidade. Nessa fase da vida em que os meus interesses nao estavam estabilizados nem muito priorizados, o tropismo para um conhecimento mais ou menos "renascentista" era frequente. Lia, entao, sobre quase tudo. O que, como vim a aprender a minha custa, foi uma perda de tempo.

    As vezes, ainda sinto essa curiosidade residual sobre coisas muito diversas. E o vazio de tarefas, numa cama de hospital, pode criar essa tentacao. Mas so momentanea. O meu interesse por este e outros temas da ciencia (desculpa la, Jose Mariano) e' muito limitado e, decididamente, o bosao de Higgs, por mais importante que seja ou venha a ser (e se acaso existir mesmo), nao mobiliza a minha atencao.

    Por isso, passei para a pagina seguinte do "Le Figaro", para a seccao de educacao, onde uma materia se destacava (tal como ja observara no "Le Monde"): as novas regras nos concursos de admissao a Sciences-Po. Ja e' azar! Outro assunto de "sciences" que nao me interessa nada e sobre o qual tambem nada sei.

    Sendo assim, afinal vou "'a bola". A tempo de rever, na televisao, a bela vitoria do Chelsea de Villas Boas com um magnifico golo de Raul Meireles.

    E mais nao escrevo porque fazer posts por iPhone, sem acentos nem cedilhas, provoca-me dores. De alma, claro.

    quarta-feira, dezembro 14, 2011

    Grupo de Genebra

    Nos anos 70, em Portugal, a minha geração ouvia falar bastante do "grupo de Genebra", um núcleo de exilados portugueses, alguns deles em rutura com o PCP, que produziam uma reflexão política original, a qual, a certo passo, passou a expressar-se através da revista "Polémica". Sabia-se que nomes como os antigos dirigentes associativos e líderes académicos como Eurico Figueiredo, António Barreto e José Medeiros Ferreira faziam parte desse núcleo. Mais tarde, Ana Benavente (que vim a cruzar no MES) e Valentim Alexandre foram revelados como também integrantes do grupo. Ao lado dessas pessoas, citava-se o nome de Carlos Almeida, um funcionário internacional que nunca regressou a Portugal e que, com Barreto, viria a publicar, ainda antes do 25 de abril, um livro que se tornou importante: "Capitalismo e emigração em Portugal".

    Os membros do "grupo de Genebra", após a Revolução de abril, tiveram percursos, políticos e profissionais, algo diversos. Agora decidiram pôr em texto as suas memórias - "Pátria utópica - o grupo de Genebra revisitado" -, prefaciados por outro exilado, o escritor Amadeu Lopes Sabino. Cada um escreveu três capítulos, respetivamente sobre a saída de Portugal, a estada na Suiça e o regresso ao país.

    Para quem se interessa por estas coisas, como é o meu caso, trata-se de um repositório interessante de memórias, que nos ajuda a perceber melhor um certo tempo de Portugal. Os textos são desiguais, na qualidade da escrita, na profundidade das ideias e até no modo como cada um tenta ou não desenhar, para a História, o seu caso pessoal. Mas é um livro que vale a pena.

    terça-feira, dezembro 13, 2011

    O ensino do português em França

    Este não é um blogue oficial. É apenas um meio de expressão privada de quem exerce uma função pública. Sem falsas dualidades. O cidadão que aqui escreve todos os dias é o mesmo que tem a seu cargo a representação diplomática portuguesa em França. Não tem duas caras, nem duas palavras.

    Digo isto para que se perceba melhor por que razão me sinto obrigado hoje a falar aqui, neste meu blogue privado, da situação que resultou da decisão oficial de suspensão de atividade de duas dezenas de professores que prestavam serviço junto das comunidades portuguesas em França. Não para aqui trazer algo de novo ou espetacular, mas, tão simplesmente, para que fique claro que todas as razões que se cruzam neste processo não me são indiferentes. E que a diplomacia pública que tenho como regra de trabalho me obriga a explicitar.

    Pais e professores afetados pela anunciada suspensão da prestação do serviço oficial de ensino de português - decisão que abrangeu comunidades noutros países, para além da França -, bem como instituições que partilham essas preocupações e temem pelo futuro da língua portuguesa nas gerações luso-descendentes, têm-me transmitido os seus sentimentos de profundo desagrado com a situação que se avizinha, com os efeitos na vida académica das crianças, com impactos na vida pessoal e familiar dos professores e todo um conjunto de outras consequências que lêem como negativas. A todos ouvi com atenção, nada do que foi transmitido deixou de ser comunicado, atempadamente, a quem tutela o nosso trabalho. E, convém também que se diga, nessa comunicação não deixou sempre de transparecer o meu respeito pelas legítimas inquietações que atravessam esses setores da nossa comunidade.

    No outro prato da balança, está a muito difícil questão orçamental com que o Estado português hoje se confronta, e à luz da qual o Governo considerou indispensável tomar medidas drásticas de restrição a nível da despesa pública, algumas das quais afetaram áreas do Ministério dos Negócios Estrangeiros: a rede diplomática e consular foi redimensionada, a estrutura do ministério e as suas chefias foram reduzidas, verificaram-se cortes no pessoal que prestava serviço no estrangeiro e houve lugar a limitações em vários setores onde foi entendido poder e dever ser reduzida a despesa. A suspensão do serviço dos professores inseriu-se, assim, num esforço muito mais vasto para fazer baixar os gastos públicos, no declarado objetivo de os conter dentro dos limites impostos pelos compromissos internacionais subscritos pelo país e que o executivo assumiu como prioritários na sua ação.

    Alguns poderão objetar, e muitos o fazem, que se deveria ter cortado menos "aqui" e que teria sido preferível fazê-lo "ali". Alguém que deixou um traço eterno de esperança na política francesa, e que, curiosamente, era descendente de portugueses que haviam fugido da inquisição, Pierre Mendès-France, dizia que "governar é escolher". E o Governo português, recém-legitimado por uma eleição em que os portugueses lhe conferiram uma expressiva maioria, isto é, uma autorização para decidir, fez as suas escolhas em matéria de cortes na despesa pública, à luz das opções que entendeu dever assumir. As pessoas podem concordar ou não com essas opções, é perfeitamente democrático discuti-las e contestá-las, mas não é possível recusar a legitimidade política das decisões tomadas.

    No terreno, estão as Embaixadas e os servidores públicos. Compete-nos dar leal e total cumprimento àquilo que o poder político legítimo determina, da mesma forma que temos o dever de ouvir e comunicar às nossas autoridades o sentimento de quem se sente negativamente afetado pelos efeitos das suas decisões. E temos ainda um outro dever e a Coordenação do ensino do português em França está a cumpri-lo de forma escrupulosa: tentar atenuar, por um melhor e mais eficaz ajustamento dos recursos letivos disponíveis, as consequências que resultaram para alguns alunos da saída dos seus professores. Não para todos, infelizmente. E, convém também que se diga, ainda neste quadro, e sob orientação superior, um esforço paralelo está a ser levado a cabo para, no futuro, poder vir a encarar-se o desenvolvimento de um ou vários modelos complementares, que permitam assegurar a continuidade do ensino do português em França, quiçá menos dependente da atual fonte oficial de recursos.

    Todos compreenderão não ser esta uma situação em que um diplomata se possa sentir particularmente feliz. Seria mesmo impensável que o fosse. Mas, depois de uns bons anos desta profissão, já percebi que a felicidade de um diplomata é sempre, na melhor das hipóteses, um efeito colateral da atividade do Estado.          

    O excelente José Gravia

    A notícia chegou-me na noite de ontem: morreu, no Brasil, José Gravia. A generalidade dos leitores deste blogue, bem como a imensa maioria dos brasileiros (que não dos brasilienses, que são os brasileiros de Brasília), não fará a mais leve ideia de que era este português, saído de Ourém para o Brasil, há mais de 60 anos, que a pulso construiu um nome e a rara dignidade de o poder usar como carta de confiança. Eu também nunca ouvira falar nele, até 2005.

    O nome de José Gravia tinha vindo à baila, a montante da minha partida para Brasília, numa conversa durante a qual o meu antecessor, embaixador António Franco, me tentou indicar algumas figuras de referência no seio da nossa comunidade. Recordo-me bem do que disse: "Tens por lá um grande senhor, um homem de bem, o excelente José Gravia". Na memória, ficou-me para sempre o "excelente". Quatro anos de Brasília e de contacto com a nossa comunidade confirmaram a consabida agudeza de leitura de carácteres do António Franco.

    Já em Brasília, conheci cedo a Raquel e o José Gravia, creio que em casa do António Luis Cotrim. Era um homem grande, com um permanente sorriso, gentil no trato e suave nas palavras. Tinha uma história longa de trabalho, de iniciativa e de sucesso empresarial. "Candango" (primeiros ocupantes de Brasília) por opção de vida, passou a fazer a sua atividade profissional no planalto, entre Anápolis e a cidade-satélite de Taguatinga, onde presidiu à Associação Portuguesa de Brasília, cujas magníficas instalações muito lhe devem. Portugal e o Brasil atribuiram-lhe, a seu tempo, merecidas distinções. Era  conhecido como um homem solidário, amigo de fazer bem. Encontrávamo-nos a espaços e lembro-me bem de uma longa conversa, num dos muitos jantares em que coincidimos, onde me elucidou, com equilíbrio, realismo e sabedoria, sobre algumas peculiaridades da sensível relação entre a política local e os interesses económicos. Reavaliei muita coisa, depois do que dele ouvi.

    Aos homens fora do comum devemos evitar os lugares-comuns. Mas são estes que frequentemente ocorrem na reação simples de quantos, não sendo poetas ou mágicos da escrita, pretendem apenas deixar uma nota sentida pela saída de cena de alguém que muito respeitavam. Como o é este nosso abraço à Raquel, à memória do amigo José Gravia.

    domingo, dezembro 11, 2011

    Quai d'Orsay

    Há mais de um ano, falei aqui do "Quai d'Orsay - chroniques diplomatiques", um álbum de banda desenhada passado no ministério francês dos Negócios Estrangeiros, ao tempo que era dirigido por Dominique de Villepin (embora, nesta ficção, sob o nome de 'Alexandre Taillard de Vorms'). Saiu agora um segundo volume dessa série, dedicado ao período da guerra no Iraque (país designado por 'Lousdem").

    Não estou seguro que a curiosidade com que um diplomata é motivado a ler este tipo de histórias seja comum à de qualquer outro leitor, para quem a vida dos gabinetes e das relações internacionais é marginal ao seu quotidiano. Por mim, devo dizer, diverti-me bastante ao ver reconhecidos no álbum alguns tiques do "métier".

    Por lá se encontra a obsessão dos titulares de cargos políticos em conseguir ter, numa simples folha de A4, o essencial de um relacionamento com um qualquer Estado, a "fácil" ordem para preparar um artigo de jornal "para ontem", a determinação em garantir um transporte "impossível" ou a impaciência com alguns detalhes onde, como se sabe, se esconde o "diabo". O texto não escapa à fina caricatura, neste caso muito bem conseguida, de alguns diplomatas-tipo: os irónicos, os "nonchalants", os angustiados, os "workaholics", os autoritários, os "definitivos", os cínicos e outros que tais.

    Por uma qualquer razão, o serviço de "cifra", por onde passam as comunicações (os "telegramas diplomáticos") é particularmente visado neste álbum, onde o ministro é colocado a dizer ao chefe desse serviço: "Convosco, podemos sempre ter a certeza de ser informados em tempo real do que se passou na véspera"...

    Ainda uma nota para o reaparecimento da figura de 'Claude Maupas', chefe de gabinete do ministro, que retrata, à perfeição, a serenidade e lealdade de Pierre Vimont, um bom amigo que era chefe de gabinete de Villepin, e que hoje dirige o Serviço europeu de ação externa (SEAE)  e de quem já falei aqui.

    Finamente, porque a ficção se cruza com a história, vale a pena dizer que, há escassas horas, em solene anúncio na televisão francesa, 'Alexandre Taillard de Vorms', ou melhor, Dominique de Villepin, acabou de anunciar a sua candidatura à presidência da República francesa.

    A importância da política

    Todos se recordam do sobressalto público causado, já há uns tempos, pelo facto de um antigo primeiro-ministro português ter visto interrompida uma conversa que estava a ter com uma jornalista, durante um noticiário televisivo, comentando temas do quotidiano da política pátria, para abrir tempo a um curto direto do aeroporto, para onde a estação havia enviado repórteres, há várias horas, à espera de José Mourinho, num contexto de uma qualquer expectativa que então existia quanto ao futuro do famoso treinador. A figura política, enquanto viu o direto, deve ter ficado a matutar e, quando a emissão regressou ao estúdio, fez uma declaração firme, logo seguida de um abandono de cena espetacular, indignando-se pelo facto do seu verbo ter sido interrompido por um motivo tão corriqueiro. Não saiu a meio do direto, que lhe estaria a fazer perder o seu precioso tempo, mas apenas saiu no fim, para poder bem "explorar o sucesso", utilizando uma imagem militar. Foi talvez pena que à jornalista entrevistadora não tivesse ocorrido interrogá-lo sobre o tema do direto, tanto mais que essa personalidade pública era bem conhecida como comentador regular, bem avençado, das coisas da bola. 

    Vem isto a propósito da edição das 20 horas do noticíário da televisão pública France 2, um dos mais vistos em França, no dia subsequente ao recente acordo europeu de Bruxelas. A emissão abriu com o jornalista que a conduzia, David Poujadas, a mostrar, ao seu lado, o primeiro-ministro François Fillon, que iria falar mais tarde sobre a necessidade da França, no novo contexto, ter de introduzir ou não planos acrescidos de austeridade, tema que aqui causa algumas naturais ansiedades públicas. O noticiário prossegiu, com um alinhamento que juntava a crise europeia aos novos horários dos comboios, incidentes securitários e eventos regionais a temas diversos de política internacional, com curtíssimos diretos e todas as notícias do desporto, claro! No estúdio, Fillon permaneceu todo esse tempo silencioso, à espera da sua hora, que apenas foi às 20.24, quando pôde finalmente começar a falar. E o telejornal acabou, claro, às 20.30, porque a meia hora de duração é por aqui coisa sagrada.

    A televisão que interrompeu a entrevista do antigo primeiro-ministro português, já há muito fora de funções, era e é privada. A estação que fez esperar vinte e tal minutos um PM francês em pleno exercício é pública. Cada terra com seu uso. Isto não nos ensina nada? 

    sábado, dezembro 10, 2011

    Variações sobre o "sim" e o "não"

    "Há por aqui, de facto, expressões separadas e distintas para "sim" e para "não". Mas sendo indelicado, segundo os costumes locais, usar esta última palavra, a primeira é utilizada com ambos os sentidos. Assim, fica ao critério da pessoa que ouve decidir se o "sim" que recebeu como resposta deve ser interpretado, afinal, como um "não" definitivo ou como um "não" que ela pode converter num "sim", expressando o pedido de outra forma. Mas, normalmente, o "sim" quer significar que o pedido recebe um acolhimento favorável, o que acaba por ter como consequência que nenhuma ação subsequente será tomada. Se convidar um nacional local para jantar, e ele aceitar, daí não se deve deduzir necessariamente que ele vai estar presente, mas apenas que, ao dizer que aceitava, ele quis ter para consigo um gesto de cortesia; dessa forma, ele transferiu a obrigação de si próprio para si e considerou-se desobrigado de aparecer."

    Extrato de um telegrama de um embaixador britânico, num determinado país, citado em "Parting shots", um delicioso livro de Matthew Parris e Andrew Bryson, sobre correspondência diplomática. 

    Gonçalo Ribeiro Telles

    Há uns tempos, disse por aqui que o país estava a dever uma homenagem ao arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles.

    Ao ler, no "Expresso" de hoje um artigo que Miguel Sousa Tavares lhe dedica, fiquei a saber que o Centro Nacional de Cultura e a Fundação Calouste Gulbenkian organizaram, há dias, essa homenagem.

    Valha-nos isso.

    Em tempo: deixo esta foto que, pelo seu conjunto, me parece exemplar de simbolismo.

    "Tina"

    O "The Sun" não foi nada inventivo na sua primeira página de hoje. Num "remake" sem rasgo do celebre, insultuoso e eurofóbico título de Novembro de 1990, sobre Delors (que a proverbial decência deste blogue obriga a não repetir aqui) o tablóide saúda a atitude intransigente de David Cameron em Bruxelas, mas não deixa de alertar para um possível "backlash" detrimental para os interesses britânicos.

    Nao estivesse a senhora Thatcher (ironicamente) com a doença do alemão e talvez repetisse ao seu sucessor o acrónimo de que tanto gostava quaando falava do capitalismo liberal: "tina" ("there is no alternative"). Palavra que, paradoxalmente mas noutro sentido, é verdadeira para todos os outros.

    É a vida. Foi uma certa e breve Europa.

    sexta-feira, dezembro 09, 2011

    João Martins Pereira

    Há dias, descobri, por um mero acaso, que teve lugar em Lisboa um colóquio sobre a vida e obra de João Martins Pereira (1932-2008).

    Martins Pereira foi uma figura singular na reflexão política e económica em Portugal. Dotado de uma agudeza analítica muito apurada, tinha um pensamento original sobre muitas matérias do nosso quotidiano, no qual se combinava um rigor, que vinha da suas formação de engenheiro, com uma perspetiva económica e sociológica de onde ressaltava uma rara consistência ideológica. Os seus combates, feitos sempre de forma discreta, situaram-se, quase sempre, num terreno bastante radical, embora isento de dogmatismo.

    Antes do 25 de abril, publicou um livro que deu brado: "Pensar Portugal hoje". Conheci-o brevemente, nos anos 70, ao tempo do lançamento da última série de "O Tempo e o Modo". Passou brevemente pelo IV governo provisório, como secretário de Estado de João Cravinho. Lembro-me que dirigiu uma publicação muito interessante, de breve viva, chamada "Gazeta da Semana". 

    Uma noite, em Angola, já nos anos 80, falámos longamente, em casa da Alzira e do João Sobral Costa. João Martins Pereira faz parte daquelas pessoas que fico com pena de não ter conhecido melhor.

    quinta-feira, dezembro 08, 2011

    Marti

    O convite era interessante: para assistir, no CCB a um concerto da soprano Monserrat Caballé. Numa parte do espetáculo, seria acompanhada da sua filha, Monserrat Marti.

    Alguns governantes de então, bem como figuras sociais, ficaram numa área reservada. No intervalo, no regresso aos lugares, estava a cena preste a reabrir-se, veio à conversa, no grupo, a questão de saber de onde viria o nome "Marti", da filha de Caballé. 

    Pensando fazer uma graça que logo daria lugar a algumas gargalhadas, pelo ridículo da sugestão, adiantei:

    - Deve ter sido o resultado de algum "caso" entre a Monserrat Caballé e o revolucionário cubano José Marti...

    À minha volta, fez-se um silêncio reverente, prenhe de respeito pelo meu "conhecimento" histórico e biográfico. José Marti viveu no século XIX, tendo morrido em 1895. 

    De todos os presentes, apenas Manuel Maria Carrilho fez um largo e culto sorriso de gozo. E eu entrei em silêncio, porque há muito já aprendi que é muito sério brincar com a ignorância.

    quarta-feira, dezembro 07, 2011

    João Caraça

    João Caraça, até agora diretor do serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian, será, a partir de janeiro de 2012, o novo diretor do Centro cultural da Fundação em Paris. Conheçam-no melhor pela sua página e por esta entrevista.

    João Caraça sucede a João Pedro Garcia, que agora retoma, em plenitude, em Lisboa, o serviço de Relações Internacionais da Gulbenkian, depois de um notável trabalho, de cerca de sete anos, em Paris.

    A relação entre a Embaixada e a Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, é, de há muito, um caso exemplar de bom entendimento e colaboração. É muito bom ver um amigo ser sucedido por outro. Por isso, aqui deixou um forte abraço de boas-vindas ao João Caraça.

    terça-feira, dezembro 06, 2011

    Pausa

    Por algum tempo, a partir de hoje e por razões que não vêm para o caso, este blogue vai entrar num ritmo algo imprevisível. Logo veremos quando será possível retomar uma feitura de posts mais assente numa maior atenção ao quotidiano. A publicação de comentários também será afetada, desculpem lá! 

    Eros Grau

    Chama-se Eros Grau. É brasileiro, professor universitário de Direito com vastíssima obra, antigo e destacado juíz do respetivo Supremo Tribunal Federal e, claro, escritor, já com ficção publicada (e que ficção, senhores!).

    Adora Paris, onde muito nos encontramos e saudamos a vida, conhece interessantes histórias e gentes de Saint-Germain-des-Prés. E, o que é mais importante, é um dos meus grandes amigos.

    Hoje, em Brasília, Eros lança um livro com memórias (não um livro de memórias), notas resultantes de décadas como atento "flâneur" da zona da "rive gauche" que dá subtítulo ao volume. E avisa-me, agora, que por lá sou também referido: temo o pior!

    Não vou poder estar (claro!) no lançamento, como o não poderão o Francis e toda a equipa do "Flore", que já o aguardam, com a Tânia, para o Natal. Apenas quero que saiba que todos, nós e eles, lhe desejamos, com um abraço do tamanho do Atlântico, um grande sucesso editorial.

    segunda-feira, dezembro 05, 2011

    Andorra

    Ontem, ao receber a minha nova colega andorrenha, veio à conversa a importância que teve, para a minha geração, a Rádio Andorra, uma histórica estação que marcou muito do nosso imaginário, nos anos 60 e 70. Com uma seleção musical magnífica, nos seus programas em francês e espanhol, a Rádio Andorra, desaparecida em 1981, foi um marco que muito ajudou à identificação daquele pequeno país no quadro internacional.

    A frase "Aqui Radio Andorra!" é uma das memórias fortes que conservo da rádio que muito ouvia na juventude. A certa altura, recordo-me que a Rádio Andorra substituiu a saída do ar da Radio Caroline e da Radio London, as "rádios-pirata" que, a bordo de barcos ao lado da costa britânica, abalaram ao noites, até serem caladas à força, apresentando a grande música anglo-saxónica que iria dominar o mundo.

    A minha colega disse-me que o seu governo tem plena consciência do papel desempenhado pela Rádio Andorra, nos auditórios espanhol e francês, havendo já projetos para preservar o seu histórico edifício. Só não contava que, também em Portugal, subsistisse uma memória desse património do seu país. É verdade: nesse tempo, alguns de nós procurávamos estar à escuta do mundo. Até de Andorra!

    domingo, dezembro 04, 2011

    Ainda o Irão

    Em Junho de 2000, coube-me chefiar uma missão de "diálogo político" da União Europeia a Teerão. Da "troika" (já as havia...) que me acompanhava, faziam parte um diretor do Quai d'Orsay (a França iria suceder-nos na presidência, dias depois) e um representante da Comissão Europeia, cuja nacionalidade não consigo precisar. A delegação iraniana era chefiada por um vice-ministro dos Negócios Estrangeiros.

    O diálogo com as autoridades do Irão era, previsivelmente, difícil. Cabia-me colocar-lhes todas as questões que a União Europeia via como polémicas, desde os direitos humanos à observância de princípios democráticos, com o tema dos dissidentes e presos políticos, bem como do tratamento de minorias e estrangeiros, na agenda. A conversa começou assim algo tensa, se bem que a experiência diplomática dos dois principais interlocutores a tentasse manter num registo funcional de cordialidade. No meu caso pessoal, não esquecia que, enquanto país, Portugal tem um histórico de relacionamento bastante positivo com o Irão, que devemos tentar salvaguardar, para além de todas as divergências conjunturais. 

    Para evitar veleidades que pudessem fragilizar a condução da reunião pela presidência, eu havia decidido, de uma forma algo imperativa, quais os dois temas da agenda cuja apresentação, como é de regra, ficava a cargo dos outros membros da "troika", contrariando explicitamente as propostas que, nesse sentido, me haviam sido feitas pelo secretariado-geral do Conselho, que assessora (e, às vezes, quer conduzir) as presidências semestrais. Nem a representação francesa nem a da Comissão me pareceram apreciar esse meu estilo afirmativo, mas isso era o que menos me importava: para as capitais europeias, o "saldo" geral da conversa, que tinha que ser "craftly worded" na ata, recairía sempre sobre mim. Não estava disposto a que outros condicionassem o trabalho e, por essa razão, decidi "controlar o jogo", desde o primeiro minuto, sem conceder espaço para criatividades.

    A agenda foi percorrida no tradicional "ping-pong" de argumentos. Os temas eram introduzidos, alternadamente, pela União Europeia e pelo lado iraniano, com "statements" de cada lado, complementados por comentários de "réplica" e, por vezes, "tréplica", que ficariam registados em ata. 

    A certo passo da abordagem de um ponto da agenda, o vice-ministro iraniano acusou um Estado membro da União Europeia, que não identificou, de estar a levar a cabo "atos de espionagem", em articulação com inimigos do país, contra a segurança do Estado iraniano. Interrompi-o, de imediato, e pedi-lhe para identificar o país em causa, dada a gravidade da acusação, porque isso se refletiria, de forma inescapável, sobre toda a nossa política exterior comum. Respondeu-me que não lhe era possível dizer o nome desse Estado, "para não agravar ainda mais as coisas". 

    Para grande surpresa dos membros da delegação europeia, reagi de forma muito firme: ou ele identificava o nome do país ou retirava formalmente a acusação, com efeitos na ata da sessão. O "diálogo político" não podia prosseguir sem uma dessas opções. Não podíamos aceitar que ficasse registada uma acusação genérica, que não permitisse uma contestação específica. A solidariedade entre os Estados membros da União a isso obrigava. Pelo que sugeri que o intervalo da reunião que estava previsto para mais tarde, tivesse lugar de imediato.

    O ambiente, naquela sala do ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano, toldou-se. A delegação do Irão saiu da sala, perplexa e de cara fechada. Nela ficaram os representantes europeus, entre os quais se contavam também os embaixadores português e francês, além do delegado local da Comissão, que me rodearam, perguntando-me alguns se tinha medido bem o risco de dramatização que estava a fazer correr ao já muito crítico e sensível diálogo com Teerão. Eu disse que sim, mas, interiormente, perguntava-me se o "bluff" iria resultar.

    Tinha razão. Resultou. Minutos depois, o chefe da delegação iraniana reabriu a sessão dizendo que, com vista "a facilitar um eficaz funcionamento dos trabalhos", propunha que, da ata, não constassem as referências que antes tinha feito sobre o "tal" Estado membro europeu. Agradeci-lhe o esforço e prosseguimos o debate num ambiente que, de certo modo, ficou bem mais distendido. O desfecho provocou um aliviado e expresso agrado do diretor francês, que nos sucederia na presidência e que, seguramente, temeu, por alguns minutos, ficar nas mãos com uma "batata quente", para os próximos seis meses.

    Vale a pena notar que, desde o início, todos nós sabíamos que a acusação iraniana se dirigia ao Reino Unido, país com o qual, de há muito, Teerão tem um recorrente contencioso, como os acontecimentos dos últimos dias vieram, uma vez mais, a evidenciar. Ora o vice-ministro iraniano, meu contraparte na chefia das negociações, havia-me revelado, em conversa privada antes da reunião, que, no final desse ano de 2000, deveria ir para Londres como embaixador (o que realmente veio a acontecer), solução que muito lhe agradava. Ao colocá-lo "contra a parede", exigindo a retirada das acusações e a revelação do nome do país, eu tinha tido isso em conta. Se acaso ele mencionasse o nome do Reino Unido, e ficasse na ata ter sido ele quem lançara internacionalmente essa atoarda não provada, com toda a certeza que o governo de Londres nunca lhe daria "agrément".

    A vida diplomática também se faz com alguns truques, como se vê.

    Dominick Chilcott

    Há minutos, ao passar em "zapping" pela BBC, dei-me conta que conhecia bem a cara de quem falava. Parei um pouco. Era o embaixador britânico que acabara de ser expulso de Teerão, onde chegara apenas em outubro passado. Era Dominick Chilcott.

    Então ainda jovem diplomata, Dominick era contacto regular da nossa Embaixada em Londres, no "desk" do "Europe Directorate", nos dois primeiros anos da minha estada no Reino Unido. Um dia, convidou-me para almoçar e, com pedido de discrição, revelou-me que ia ser colocado na embaixada britânica em Lisboa. Lá o voltei a encontrar, durante mais dois anos, depois do meu regresso ao MNE, em 1994. Dominick Chilcott viria a ser chamado de volta a Londres e a ingressar no gabinete do MNE britânico e, por diversas vezes, cruzámo-nos nas coisas europeias, onde a atípica posição britânica justificava maior atenção. Em 1998, num elevador do "Justus Lipsius", em Bruxelas, disse-me que acabava de ser colocado na missão do seu país junto da União Europeia. Com frequência, fomo-nos por lá vendo, até à minha partida para Nova Iorque, em 2001. Perdi-o de vista desde então, como às vezes acontece com colegas estrangeiros.

    Dominick Chilcott é um diplomata discreto, com sentido de humor, muito bem preparado e de uma só palavra, como tive ocasião de provar.

    Agora, à pressa e sob riscos para si e para sua família, teve de abandonar o posto. A vida tem destas coisas, Dominick! "Bon courage"!

    sábado, dezembro 03, 2011

    A questão iraniana

    Na vida internacional, as relações entre os Estados processam-se sempre no quadro de certas expetativas de comportamento, pela sua previsível reação face ao posicionamento dos outros atores, que possa vir a ser afirmado bilateralmente ou no quadro multilateral. Se bem que algumas surpresas sempre possam surgir, na grande maioria dos casos é possível, com algum realismo, antecipar atitudes e, dessa forma, medir as condições necessárias para os compromissos ou as probabilidades de rutura. É assim que se procuram evitar guerras e conflitos, cabendo aos diplomatas um papel central no domínio desta diplomacia preventiva.

    O grande problema que se coloca à comunidade internacional é o pontual surgimento, no comportamento de certos Estados, de atitudes que, não apenas não era possível prever, mas que igualmente se tornam difíceis de interpretar, em todas as suas possíveis motivações. Esta circunstância cria dificuldades de "leitura", induz interrogações e pode levar a reações diferenciadas por parte de outros Estados.

    O comportamento recente do Irão, com o saque às instalações diplomáticas britânicas em Teerão, claramente feito sob a aparente complacência das autoridades policiais, na sequência de sanções bilaterais determinadas pelas mais que legítimas preocupações face à evolução do programa nuclear do país, é um exemplo desses comportamentos de difícil interpretação e de elevado risco. E suscita questões que somos chamados a colocar, nãso tendo para elas uma resposta clara.

    Que pretende o Irão com este tipo de atitudes, onde se inclui o seu desafio à AIEA? Que mais riscos está o regime iraniano disposto a correr, nesta linha de comportamento? Até onde estará disposto a avançar? Que avaliação faz Teerão dá utilização do petróleo no seu "jogo" internacional? Como estarão as autoridades iranianas a medir o grau de probabilidade da ameaça de um ataque israelita às suas instalações nucleares?

    A persistência destas interrogações nada ajuda à descoberta de soluções para a estabilidade e para a paz na região. E Teerão sabe, com certeza, que assim é, o que torna tudo mais preocupante.

    sexta-feira, dezembro 02, 2011

    José Mensurado (1931-2011)

    José Mensurado faz parte do cenário de um Portugal televisivo que atravessou as décadas de 60 e 70. Era um homem culto, com um estilo e uma postura muito próprios, produto e fautor de um certo jornalismo televisivo, elegante e conservador. Para muitos portugueses, que seguiam as aventuras espaciais ao tempo em que elas eram entusiasmantes na televisão, José Mensurado era a voz que sublinhou esses feitos, que acompanhou e relatou a memorável noite de 20 de julho de 1969, em que o homem chegou pela primeira vez à lua.

    Há já alguns anos, em Lisboa, no bar Procópio, a Alice Pinto Coelho (ela lembrar-se-á, estou certo) disse-me: "Está ali o José Mensurado, que gostava de o conhecer". Mudei de mesa e, durante quase uma hora, falei com José Mensurado, trocando memórias e imagens de gentes cruzadas por ambos, ideias sobre a Europa que lhe mobilizava a curiosidade, bem como sobre a vida internacional em geral, que manifestamente o entusiasmava.

    Consegui arranjar a coragem para lhe justificar, num tom bem mais cordial do que utilizara à época, uma chamada telefónica que eu um dia fizera, em direto para um programa de rádio em que ele participava, confrontando-o com a tristemente célebre mesa redonda televisiva que ele em tempos moderara, que passou a ser lida pela História como justificativa da extinção, pela ditadura, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Nessa mesa redonda haviam participado, entre outros, Amândio César e Mário António - o poeta angolano que havia sido meu professor de quimbundo e que reagira bastante mal, quando, também um dia, lhe falei no assunto.

    Senti também a obrigação imperativa de falar a José Mensurado naquilo que a manhã subsequente ao dia 25 de abril representara para ambos: um dia em que eu estava entre os militares que ocupavam os estúdios do Lumiar da RTP, sabendo que ele estava à porta, impedido de entrar pela nova "situação".

    Além destes temas mais sérios, que Mensurado discutiu com assinalável abertura, rimo-nos com a história dos "árabes da Rua do Século", que já aqui contei, em que ele fora involuntário comparsa.

    O José Mensurado que encontrei no Procópio era um homem sereno, uma personalidade interessante, que ganhara uma tolerância de ideias e um modo digno e sério de as afirmar. No final dessa conversa, que acabou na promessa mútua, nunca cumprida, de um jantar futuro, fiquei com a sensação de que teria bastante gosto em vir a conhecê-lo melhor. Isso não aconteceu. Morreu ontem, com 80 anos.

    Negociar na Europa

    O ministro dos Negócios Estrangeiros português referiu, há poucas horas, a necessidade da complexa negociação que aí vem, sobre a reforma dos tratados europeus, dever ser objeto de uma "frente" política interna de elevado consenso, que permita ao Estado português garantir, no plano externo, uma voz comum que potencie o seu espaço de manobra.

    O projeto europeu nunca teve uma leitura unívoca em Portugal. Não obstante a opção europeia ser historicamente objeto de uma atitude maioritariamente favorável no nosso país, setores houve que sempre se mostraram reticentes a certas políticas europeias ou ao modo como elas eram acompanhadas por Lisboa. Sei do que falo, porque, durante mais de meia década, passei longas horas na Assembleia da República a apresentar a  política europeia que era encarregado de defender, sendo regularmente confrontado, no jogo democrático interno, com posturas críticas do modo como então a dirigíamos. Em todo esse período, porém, com maior ou menor dificuldade, foi sempre possível garantir um diálogo construtivo com aqueles que, tendo divergências no pormenor, se mostravam de acordo com o essencial. E, sem limitar o espaço de afirmação das naturais diferenças, conseguiu-se projetar essas linhas comuns, não apenas nas fase decisivas das principais negociação mas, igualmente, nos processos internos de ratificação parlamentar.

    Tais negociações, que então envolveram dois tratados - Amesterdão e Nice -, não tinham, há que reconhecê-lo, a delicadeza quase "existencial" daquela com que Portugal se vai confrontar daqui a pouco tempo, a qual pode representar uma mudança do paradigma europeu e, muito provavelmente, da própria natureza da União. Como há dias tive ocasião de referir publicamente em Lisboa (ver mais abaixo), dá-se o acaso infeliz dela ter lugar num momento de alguma fragilidade da posição do nosso país, por virtude do processo de ajuda externa de que estamos dependentes, o que torna a questão ainda de muito maior sensibilidade.

    Por esse conjunto complexo de razões conjunturais, é decisivo, agora mais do que nunca, que Portugal se apresente nessa negociação com o mais alargado consenso que o diálogo político interno torne possível desenhar, com vista a maximizar a nossa influência, num esforço que é imperativo que inclua um a atuação conjugada no seio das grandes formações políticas europeias em que os partidos portugueses de matriz europeísta estão integrados.

    Refundar a Europa (3)

    O debate no painel em que participei no Congresso sobre o "25 anos na União Europeia" não foi isento de polémica. A política agrícola portuguesa para a Europa foi um dos temas mais controversos, com João Cravinho e eu próprio a não concordarmos com a abordagem de Rosado Fernandes, o que, aliás, esteve longe de ser uma surpresa. Devo dizer que, discordando genericamente da leitura que o antigo deputado europeu e dirigente da CAP faz sobre o "saldo" da nossa presença na Europa, respeito a sua perspetiva soberanista e reconheço nela uma genuinidade que me não é indiferente.

    Rosado Fernandes e eu próprio repetiríamos uma outra cordial conflitualidade, quando o professor universitário disse que tinha optado por ser deputado ao Parlamento europeu para que Portugal "se visse livre o MFA".

    Não resisti à provocação e disse que o Comandante Costa Correia, destacada figura do Movimento das Forças Armadas, presente na sala, e eu próprio, ambos militares no dia 25 de abril de 1974, embora com graus muito diferenciados de responsabilidade, tínhamos uma imenso orgulho na "herança do MFA". Não o disse, mas poderia tê-lo dito, que Portugal apenas foi admitido como membro das comunidades europeias depois da Revolução ter aberto o país à liberdade que a ditadura lhe negava. 

    quinta-feira, dezembro 01, 2011

    Refundar a Europa (2)

    Encerrou no dia 30 de novembro, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o "Congresso internacional 25 anos na União europeia", organizado pelo respetivo Instituto Europeu (que também comemora um quarto de século de existência), sob a orientação do professor Eduardo Paz Ferreira.

    Devo dizer que, nas quase cinco horas de trabalhos a que assisti, confortei a minha ideia de que Portugal dispõe de uma "massa crítica" de reflexão sobre estas temáticas que pede meças a qualquer país europeu. Julgo que isso mesmo pôde constatar o meu colega francês em Lisboa, Pascal Teixeira da Silva, que seguiu atentamente os trabalhos.

    No que me respeita, destaco alguns pontos do que abordei no meu painel:

    - a crise da governabilidade democrática na Europa contemporânea.

    - as tensões induzidas ou a induzir pela crise europeia nos sistemas constitucionais de cada país.

    - a forma diferenciada como as opiniões públicas nacionais são mobilizadas pelo fatores de insegurança que atravessam a Europa.

    - a perceção pelos eleitores nacionais das diferenças de poder, no âmbito europeu, dos seus titulares da representação política, com naturais efeitos na respetiva legitimidade.

    - a fragilidade particular que sofrem os países sob tutela de programas de ajustamento, que vivem um quase ambiente típico de "pós-guerra".

    - a necessidade de perceber que há uma linha muito fina que separa a assunção de medidas de rigor e austeridade, aceites como indispensáveis e assumidas como legítimas, da ideia de se estar perante um "diktat" externo gerado por um "estado de necessidade", que pode alienar a respetiva aceitação popular, com riscos sociais graves.

    - a necessidade de preservar a confiança entre os Estados membros, por forma a não gerar clivagens entre as várias opiniões públicas, se se pretende garantir condições para uma futura reforma, ainda que limitada, dos tratados europeus.

    - a especial posição em que Portugal se encontra, fruto da necessidade de cumprir, com rigor, compromissos que derivam na nossa fragilidade económico-financeira, ao mesmo tempo que os seus dirigentes têm forçosamente de assumir posições políticas que garantam a não marginalização do país, no quadro dos novos arranjos europeus que, queiramos ou não, aí virão.

    - a importância de Portugal praticar, neste difícil contexto, uma política muito pragmática de alianças e, tal como no passado, ter de fazer opções de matriz inclusiva e centrípeta face aos modelos mais coesos de integração (ou de cooperação intergovernamental) que possam vir a ser desenhados, evitando, o mais possível, qualquer risco de periferização.

    Tal como acontecera no painel anterior àquele em que participei, que havia sido dedicado à questão financeira e onde houve intervenções de grande qualidade e profundidade, fiquei muito agradado com a discussão tida com os meus colegas de painel - onde António Vitorino traçou um rigoroso inventário prospetivo do que pode esperar a Europa como saldo desta crise, onde João Cravinho ilustrou com a sua experiência pessoal as dificuldades de participação no quadro interinstitucional na União, onde Raul Rosado Fernandes "partiu a loiça" com a sua heterodoxia eurocética e afastamento do "politicamente correto" e onde Nuno Severiano Teixeira traçou um interessante e elaborado quadro histórico do papel central da Alemanha nos diversos tempos de revisão do "contrato europeu".

    Pegando no último tema, deixei clara no final dos trabalho a minha perspetiva de que o trabalho franco-alemão se constituiu sempre, no passado, como um contributo da maior importância para a dinâmica do processo europeu. Porém, o modo como a "coreografia" do exercício dessa influência se estava a apresentar, nos últimos tempos, no cenário de afirmação dos poderes tinha, com toda a evidência, criado algum incómodo e mal-estar em certos parceiros, que se sentiam pressionados por uma espécie de "duopólio" auto-designado, que era particularmente chocante no tocante ao que parecia ser uma clara subalternização das instituições.

    Neste ponto, parecia-me cada vez mais delicada a posição da Alemanha, cuja imagem histórica evolutiva sempre constituiu um pano de fundo referencial para todo o processo integrador. Não me sossegava verificar - mesmo em França, onde o esforço de reconciliação teve talvez o seu maior expoente -, a clara geração de um ambiente de desconfiança quando ao "excesso de poder" de Berlim. A questão alemã é uma questão europeia e o modo como a movimentação do poder alemão é vista em todo este contexto não deixará de ter consequências no ambiente de confiança indispensável à consensualização de soluções de futuro.

    Aproveito para deixar um link para o texto que, em paralelo a esta Conferência, publiquei no livro "25 anos na União Europeia - 125 reflexões", editado no dia 30 de novembro pelo Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa. É um texto "perecível", quiçá a ser infirmado pelos factos, no curto prazo. Porém, como afirmei na Conferência, ao abordar este tipo de assuntos sinto-me hoje como estando a debater teorias climatéricas no meio de um ciclone...

    Em tempo: a JustiçaTV trouxe a intervenção inicial que fiz (depois complementada por outras duas intervenções)

    Maduro e a democracia

    Ver aqui .