Está bem! Por uma e última vez, faço-lhe a vontade, trato-o por António, coisa que nunca antes fiz,
muito embora você me tivesse notado o ridículo que era o facto de
que, sendo nós tão amigos e tão próximos, eu teimasse em tratá-lo sempre por “embaixador”.
Faço-o agora e na hora da sua morte, que há dias por aqui pressenti. Quer saber agora porque persisti nesse tratamento cerimonioso? Porque, não obstante, ao longo da
minha carreira, ter sido chefiado por vários outros embaixadores, de quem sempre fiquei amigo, devo-lhe a si, António, a mais humana leitura do modo como
se deve estar nesta “arte” de nos representar pelo mundo, com atenção aos
outros, com a perceção e o respeito pela diferença, com a sua incessante curiosidade
pelo novo e, muito em particular, pelo seu sentido patriótico no exercício de uma tarefa única, que,
salvo para um bando de ignorantes patetas, estará sempre muito para além de uma simples profissão.
Um dia, espero ter tempo e engenho para contar as nossas divertidas aventuras nessa
Luanda de uma Angola em guerra, as conversas pelas noites da Anunciada Velha (onde pensávamos,
precisamente este ano, passar uns serões consigo e com a Sofia, repetindo uma saltada aos petiscos vizinhos, na dona Céu), os dias em que estivemos em Itália, onde eu lancei, para sua irritação, o "neovaticânico" conceito das “tostas místicas”, consigo a levar a sério a minha “ameaça”
de lhe cortar, do quadro do pessoal, o conselheiro eclesiástico – o mesmo que, há pouco, na Estrela,
oficiou religiosamente, perante os muitos amigos seus que ali vieram, a sua derradeira despedida.
Há semanas, falámos pela última vez, por uns minutos breves, no ambiente assético
dos cuidados intensivos do hospital. No meio de temas que lhe iam e vinham à
memória já frágil, revelou-me então que gostaria de ter escrito mais sobre a Alemanha, onde havia passado um tempo que foi histórico. Estava muito cansado, com as forças e as conversas a fugirem-lhe. E senti-o a afastar-se irremediavelmente de todos nós. Isso aconteceu agora.
Fico feliz pelo facto de, um dia, me ter dado o gosto de prefaciar o
seu “Diário da Guiné”. Nele deixei o mais sincero retrato que consegui fazer de si,
ao longo destes anos de amizade imaculada, de imenso respeito e admiração pelo “meu
embaixador”. Reproduzo as últimas linhas desse prefácio, sobre o seu papel como diplomata, como homem e, principalmente, como português:
“Ele representa um país, e representa-se nesse país, que
sabe ser uma ilusão melhorada do Portugal oficial que existe por detrás das
ordens que recebe, e escuda-se sempre, com um inquebrantável optimismo, na sua visão
do que Portugal poderia ser: um país de bem, tomado por uma alegria que não
seja apenas breve, capaz de sustentar o sucesso, uma terra de tradições
saudáveis, de palavra respeitável, pátria suculenta de sopas de favas e de
primas em férias, de caturreiras à lareira das ilustres casas, pelas cidades e
as serras da memória feliz de tempos que porventura também nunca existiram, a
não ser na imaginação de quantos, saudavelmente, ainda acreditam num certo
Portugal eterno. Como António Pinto da França.”
Era assim, António, era assim que eu o
via. É assim que o recordarei, com uma imensa saudade e um forte e muito amigo abraço
nosso à coragem ímpar da Sofia.