sexta-feira, dezembro 12, 2014

Varsóvia

Foto de António Manuel Pinto da Silva
A Varsóvia do dia de hoje não está exatamente assim. Olho pela janela e o céu está um pouco mais cinzento. Mas eu gosto da Varsóvia que esta fotografia do meu amigo António Manuel Pinto da Silva ("Marius", entre os velhos amigos) retrata.

Fundação

Um dia de 2010, ao tempo em que era embaixador em Paris, fui apresentado e almocei com um jovem luso-descendente, creio que de segunda geração, quadro em franca ascensão dentro da UMP, o partido francês então no poder. Tinha uma ideia que me pareceu bastante interessante: criar uma Fundação França-Portugal que pudesse servir de centro propulsor das relações entre os dois países, da economia à cultura, passando por vários outros setores. O projeto, contudo, estava ainda escassamente desenvolvido. Disse-lhe que a embaixada estaria disponível para apoiar a iniciativa, desde que o processo de criação de uma fundação fosse totalmente transparente, aberto e inclusivo. Lembro-me que fiz algumas sugestões, que ele ficou de analisar. Por uma qualquer razão, nunca mais me procurou. E, confesso, tive pena.

Há meses, verifiquei que o nome daquele meu interlocutor parisiense surgiu ligado ao famoso caso da empresa Bygmalion, envolvida numa burla de sobrefaturação financeira no quadro da campanha eleitoral de Sarkozy, em 2012. Acabo de ler que foi detido. O mundo é pequeno e perigoso.

quinta-feira, dezembro 11, 2014

O bom e o mau da fita

Até agora, no tocante ao BES, havia o "banco bom" e o "banco mau". Hoje, ao ler com calma toda a nossa imprensa, numa espera longa de aeroporto, dei-me conta de que já está definido o Espírito Santo "bom" (Ricciardi) e o ES "mau" (Salgado).

O mundo anseia por explicações fáceis, adotando as que se adequam às ideias pré-concebidas (os franceses utilizam o conceito de "idées reçues", o que indica melhor que alguém as enviou). Não tivesse Ricciardi, para além do sorriso nervoso, um toque de arrogância de classe que facilmente o aproxima do primo (embora sem o inigualável "stiff upper lip" deste), estaria criado um "bom da fita". Os poderes de turno preferem Ricciardi, o "arrependido", que defende o regulador, que denuncia quem já é tido como o "CDT" (culpado disto tudo). E ainda não chegou o "contabilista do Luxemburgo", um conceito que soa a título de Le Carré...

Não tenho a certeza de que esta personalização da culpa ajude muito a desenrolar o novelo BES. Mas esperemos.

Milão?

Estar e não estar em Milão...

Ainda a tortura

Só li a síntese, mas são chocantes, embora não surpreendentes, as conclusões da Comissão Nacional da Verdade, criada no Brasil para inventariar a repressão conduzida pela ditadura militar, entre 1964 e 1985. 

Não obtante pareça ser evidente que, no Brasil, os crimes em matéria de ofensa aos Direitos do Homem se podem considerar ainda distantes daqueles que foram praticados pelos regimes congéneres do Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile (creio, mas não estou seguro, por ordem decrescente de horrores), o relatório ora apresentado tem dados impressionantes, com um nível de crueldade que roça a insanidade. Os mortos e desaparecidos ascendem a 434. Imagine-se agora os outros países...

A iniciativa em torno de criação desta comissão, a que ainda assisti, foi muito polémica. Há que recordar que a ditadura militar brasileira terminou com um compromisso político, do qual decorreu uma lei da aministia e uma ordem constitucional subsequente. Porém, há quem defenda que este tipo de entendimento não foi feito em total liberdade, pelo que sempre seria legítimo revisitá-lo, agora com a distância fria do tempo. 

Não sou brasileiro, não quero emitir opinião. A dois amigos pessoais, ambos antigos ministros da Justiço, ambos curiosamente gaúchos, ouvi argumentos divididos na matéria. Tarso Genro defendia que se deveria ir tão longe quanto necessário, Nelson Jobim achava que o que foi acordado é, simplesmente, para cumprir. 

De toda a forma, como bem notava a "Folha de São Paulo" ontem, "as conclusões e recomendações do relatório, apesar de não terem poder executivo, podem levar a novas ações de responsabilização de militares, pressionar por mudanças na cultura das Forças Armadas e pautar o debate de políticas públicas de segurança".

De facto, estes exercícios podem ter uma não despicienda dimensão pedagógica. Seduz-me menos a leitura retrospetiva, embora a entenda, pelo respeito devido à memória das vítimas. Mas, num tempo em que, não raramente, emergem no Brasil apelos à intervenção "purificadora" dos militares, será  muito mais útil mostrar às novas gerações a barbárie daquilo que foi cometido em nome da ditadura e dos meios por ela utilizados, à luz de uma "lógica de fins". E também não deixa de ser importante colocar todas estas evidências na praça pública, como forma de contrariar as patéticas proclamações dos militares saudosos dos tempos das torturas e do assassinato a frio dos inimigos. E, vale a pena dizer, não são aqui admissíveis comparações com a resposta violenta dos "terroristas": uma coisa é o livre arbítrio do poder, dono e senhor dos seus atos, outra coisa é reação acossada de quem vê ameaçado o seu próprio direito de existir, pelas ideias que professa.

Em Portugal, o 25 de abril, nos "brandos costumes" tradicionais da pátria, não cuidou em clarificar a verdade sobre o passado próximo. Na nossa ditadura, África e guerras coloniais à parte, terão morrido de forma violenta, pelas minhas contas, cerca de 90 pessoas, entre assassinatos deliberados, descasos criminosos nas prisões e outras formas de culposa violência. Ao ter decidido mandar Marcelo Caetano e Américo Tomaz para o Brasil, o novo regime perdeu rapidamente muita da legitimidade para poder vir a condenar quem agiu sob as suas ordens, exceto os responsáveis provados de crimes de sangue. Teria valido a pena criar, entre nós, uma "comissão de verdade"? Hoje não sei, confesso.

Partida


De manhã, andamos todos assim...

Mónaco

O Mónaco é um Principado que me é simpático. Rodeia-o um "glamour" eterno, assente na memória que o "Século Ilustrado" e a "Flama" nos trouxe um dia, do amor feliz entre um príncipe e uma bela atriz. Como nas histórias, tiveram filhos e terão sido felizes. Como a vida já não se faz hoje "by the book", cada um desses filhos tentou também, à sua maneira, ser feliz. Houve casamentos, divórcios, muitas aventuras. Tudo normal nos tempos que correm, mas que passou a ser notícia por se tratar de príncipes e princesas. Por estes dias, outro príncipe reina sobre o território, com uma princesa não menos bonita.

O país tem uma soberania limitada, com a França a desempenhar aí um papel preponderante. Mas é um Estado, "quand même"! Por acaso, fui o primeiro embaixador que Portugal fez acreditar no Mónaco, embora residente em Paris, onde se encontra a grande maioria dos representantes diplomáticos junto do Principado. Por essa razão, estive por lá em várias ocasiões e tive o ensejo de representar Portugal no casamento dos atuais príncipes. A quem, ontem, nasceram dois filhos.

Alberto de Mónaco é um homem simpático, cordial, que cultiva a memória da forte relação do seu bisavô com Portugal, tendo uma evidente simpatia pelo nosso país. O atual ministro dos Negócios Estrangeiros do Mónaco é, aliás, casado com uma portuguesa, descendente de emigrantes nacionais no sul de França. No Principado, trabalha um número muito considerável de cidadãos nacionais, uma comunidade muito estimada, a maioria dos quais residem na localidade francesa de Beausoleil. Basta-lhes atravessar a rua para entrar no Mónaco...

Ontem, emails de dois amigos monegascos anunciaram-me o nascimento dos novos príncipes. Conhecendo como os conheço, estes são, para eles, dias bem felizes, como testemunhei terem sido os do casamento dos príncipes. Parabéns!

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Mandela


Ao final da tarde de ontem, na Fundação Calouste Gulbenkian, homenageámos Nelson Mandela, um ano passado já sobre a sua morte. Foram várias e algo diversas as vozes e as perspetivas de abordagem de uma figura que nos ensinou a todos uma lição muito rara de humanismo.

Coube-me apresentar e ser o interlocutor do embaixador José Cutileiro, depois do interessante retrato que fez do seu encontro com Mandela, ao tempo em que era embaixador português na África do Sul. Cutileiro tem a leitura de que foi limitada no tempo e no espaço a influência efetiva de Nelson Mandela. Na sua perspetiva, Mandela foi um fenómeno sul-africano e a África do Sul foi o alfa e o ómega da sua ação política. A África não terá "crescido" por virtude do exemplo do antigo presidente, não sendo percetível, em particular, uma sua influência concreta no espaço subregional de vizinhança geográfica da África do Sul.

Parabéns à Fernanda Rollo e ao seu Instituto de História Contemporânea por esta iniciativa, acolhida com entusiasmo pela Gulbenkian, na pessoa da sua administradora Isabel Mota.

José Manuel Galvão Teles


Foi uma bela festa! Ele mereceu-a. O José Manuel Galvão Teles, com aquele sorriso bom que o Sean Connery pretendeu, em tempos e sem êxito, imitar, é uma grande figura, não apenas da advocacia mas também, e principalmente, da cidadania. Ontem, um imenso grupo de amigos foi homenagear uma vida bem vivida, recheada de belas e bem sucedidas aventuras, ao lado da Micucha que, como bem lembrava António Serra Lopes, o atura com amorosa paciência bem para além do meio século - que com eles já comemorámos, vai para uns tempos.

Não faço parte dos mais velhos amigos do Zé Manel, mas tenho com ele, de há muito, uma relação de grande simpatia e amizade, fruto de várias cumplicidades e cruzamentos de ideias e de interesses. É uma figura que admiro pela sua inabalável postura democrática, pela fidelidade ímpar aos amigos (sei do que falo), pela sua retidão e pela maneira alegre e jovial de estar. Ontem, senti que ficou muito satisfeito pela homenagem que lhe foi prestada, pelo belo livro que lhe foi dedicado, tendo na capa uma pintura de Júlio Pomar que, como ele próprio reconheceu, lhe retrata magnificamente os olhos. Esse seu olhar sobre as pessoas e as coisas do mundo e da vida, que nele reflete a serenidade do grande homem de bem que é.

"Safanões a tempo"

Interrogado por António Ferro sobre abusos policiais sobre detidos políticos, Salazar inquiria cinicamente sobre se não seriam legítimos alguns "safanões a tempo", por forma a prevenir atos terroristas.

Foi agora publicado, sob a responsabilidade da administração Obama, o relatório sobre as torturas ("interrogatórios intensivos", no eufemismo usado) cometidas pelas autoridades americanas, depois do 11 de setembro. Lá estão, entre outras, as simulações de afogamento, a hipotermia até à morte, a "estátua" por vários dias, a tortura do sono por uma semana e outras práticas bem criativas para extrair aos detidos, não a confissão daquilo que teriam feito, mas informações prospetivas sobre aquilo que os seus amigos poderiam vir a fazer. Eu sei que o autor não está na moda, mas saiu há meses um livro, intitulado "Confiança no mundo", onde este assunto foi tratado com algum cuidado e que pode ser interessante revisitar.

Comparando com a "qualidade" e a "técnica" das torturas praticadas nessa altura pela democracia americana, posso adivinhar que alguns nostálgicos do salazarismo devem estar a pensar, por esta hora, que, afinal, aquilo que a PIDE/DGS fazia eram quase brincadeiras de crianças.

Seria importante que alguém se lembrasse destas revelações quando, daqui a meses, o "State Department" americano vier, por aí, com o seu relatório sobre Direitos do Homem nos vários países do mundo, criticando as condições em algumas esquadras de polícia portuguesas e coisas assim. Neste ano, como no passado, nem só Guantanamo serviria de exemplo; tivemos há dias as imagens de um assassinato por asfixia, pela polícia, de um cidadão desarmado, a agitar-nos ainda a consciência. Pena é que uma espécie de temor reverencial ate então as mãos das autoridades nacionais, impedindo-as de reagir à letra. A pena de morte na Guiné-Equatorial mobiliza-as (e bem!), mas o silêncio sobre práticas idênticas na auto-proclamada maior democracia do mundo merece-lhes um prudente e regular silêncio.

Sempre a aprender

Há pouco, na rádio, ouvi pela primeira vez a palavra "femicídio" para designar o assassinato de mulheres. No fundo, trata-se da qualificação feminina do "homicídio", embora agora me interrogue sobre o termo específico para designar o assassinato de homens.

Ontem, li uma comunicação emanada de uma "adidância" militar. Décadas de carreira diplomática, nomeadamente alguns anos de Brasil, não haviam chegado para me dar conta da existência do conceito. E, claro está!, a "adidância" também se aplicará aos adidos culturais, económicos, de imprensa, sociais, do SEF, do SIED, da PJ e outros que tais. E por que não aos "adidos de embaixada", o primeiro degrau da carreira diplomática? Não desgosto do conceito: tem "movimento"...

Aprender até morrer!

Horas extraordinárias

Confesso que não entendo! Por que diabo as audições nas Comissões parlamentares de inquérito não ocorrem com a normalidade dos horários das pessoas comuns? Por que é que não começam às 9.00 ou 9.30 e encerram às 13.00, recomeçando às 14.30 ou 15.00 e encerram às 17.30 ou 18.00? O que é que é que leva - será a necessidade de dramatização? - os nossos deputados a entrarem com as suas reuniões pela noite dentro? Não é a pressa, com certeza, caso contrário já há semanas que podiam ter começado. O que é que se ganha com deputados e convocados exaustos, em maratonas patéticas? Responda quem souber, porque eu não sei.

terça-feira, dezembro 09, 2014

Presunção

 
Falemos claro. Está criado em largos setores da sociedade portuguesa o sentimento de que José Sócrates é culpado. O “esquema” das ligações financeiras, que alguém passou à comunicação social para credibilizar a “operação Marquês”, caiu como “sopa no mel” na convicção de quantos, de há muito, tinham o antigo primeiro-ministro como um potencial, ou mesmo consumado, delinquente. O que agora sucedeu só vem confortar aquilo em que sempre acreditaram. Julgo mesmo que, para essas pessoas, dificilmente é concebível outro desfecho que não seja a prisão por longo tempo de José Sócrates.
 
José Sócrates não beneficia assim da presunção de inocência, em grande parte da opinião pública. Pelo contrário, há mesmo uma forte presunção de culpabilidade que o afeta e que, nos dias de hoje, leva muitas pessoas a tentar apenas saber como se passaram as coisas e, em nenhuma hipótese, se esses factos são ou não verídicos ou se, sendo-o, pode haver para eles alguma simples e plausível justificação.
 
A perplexidade perante as acusações a José Sócrates atingem também, não vale a pena escondê-lo, muita gente que tem por ele um real apreço e que valoriza muito daquilo que fez como governante. Gente que não se revê no labéu de um Sócrates “coveiro” do país e que tem a sua leitura para o que aconteceu em termos financeiros até 2011. Inundadas por notícias que remam todas no mesmo sentido, muitas dessas pessoas mantêm a esperança de que Sócrates seja capaz de clarificar tudo e desmontar a operação instalada à sua volta. Outros há ainda que, escudados no que foi a falta de fundamento para outras acusações surgidas no passado, alimentam a tese de uma cabala urdida pelos operadores judiciários.
 
Muito se tem falado sobre o papel da comunicação social neste processo. Grande parte dos meios de comunicação, confessando-o ou não, já tomou partido e esse partido não é o de José Sócrates. Não vale a pena negar nos editoriais o que os títulos não escondem.
 
Sobre este assunto eu sei tanto como o leitor, isto é, nada. Como me recuso a deixar-me cair no “achismo”, vou acompanhando as notícias, sou delas dependente e procuro pensar friamente.
 
Tenho, porém, duas certezas.
 
Se José Sócrates fosse culpado por atos que tivesse cometido no exercício das suas funções de Estado, por ações ou omissões dolosas que pudessem ter traído a confiança que milhões de portugueses nele depositaram, tratar-se-ia de algo muito mais grave do que os próprios delitos. A vida pública concede a um grupo restrito de cidadãos a possibilidade de, por mandato de outros, gerirem o país. Quem trai este compromisso merece o opróbrio definitivo.
 
Se o caso contra José Sócrates não for suficientemente sólido, se do trabalho dos acusadores viesse a sair apenas um novelo de suspeições circunstanciais, um pacote de meras convicções, estaríamos perante uma canalhice sem nome, uma ação miserável sobre um homem, que credibilizaria então todas as suspeições que existem sobre a instrumentalização do setor da Justiça.
 
Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, dezembro 08, 2014

Soares e Freitas



Ontem, no almoço comemorativo dos 90 anos de Mário Soares estava, naturalmente, Freitas do Amaral. E lembrei-me do combate entre ambos, em 1986. E de mim, por essa altura.

Tinha acabado de chegar de Angola, em novembro de 1985. Passara mais de três anos na embaixada em Luanda, em tempo de guerra civil, com recolher obrigatório permanente, numa cidade de vida difícil e muitos riscos. Pouco tempo antes, o diretor-geral dos Negócios políticos do MNE passara por Luanda e sondara-me sobre se eu estaria disposto a vir mais cedo de Angola, sendo que o "timing" normal seria meados de 1996. Oferecia-me a oportunidade de um interessante lugar de chefia em Lisboa, na estrutura dos assuntos europeus, que fora criada para a próxima entrada de Portugal nas comunidades. Isso mudaria inesperadamente a minha vida, mas decidi arriscar, não apenas porque estava bastante cansado de Angola mas, principalmente, pelo interesse que tinha em aproveitar essa experiência inédita na aventura europeia - mais interessante ainda porque, à época, eu estava muito longe de ser um entusiasta pelas ideias europeias. Fiz as malas um tanto à pressa e, ainda com uma casa em obras em Portugal, saí de Luanda e vim para Lisboa. Nesse entretanto, no mês anterior, tinha havido eleições legislativas em Portugal, que o PSD ganhara, já com Cavaco Silva. Quando cheguei às Necessidades, fui apresentar-me ao secretário-geral do ministério. Notei-o algo embaraçado, pouco à vontade. É que me esperava uma desagradável surpresa: o novo governo decidira não confirmar o convite que me fora feito. Eu não teria a chefia prometida. Melhor: não teria mesmo nenhuma chefia! E, por várias semanas, nem lugar para me sentar iria ter... 

Não era assim o melhor o meu estado de espírito, nesse início de 1986. Na política e não só. A campanha eleitoral em curso em Portugal não me entusiasmava muito. À esquerda, Mário Soares disputava com Salgado Zenha e Maria de Lurdes Pintasilgo a possibilidade de bater Freitas do Amaral, numa possível segunda volta. Tinha a maioria dos meus amigos distribuídos por aqueles três candidatos. Como cidadão, a minha preferência, embora sem excessivo entusiasmo, ia para Zenha, mas eu nem sequer estava inscrito para votar em Portugal. Confesso que então me assustou bastante o discurso da direita, os chapéus de palhinha e os "loden" verde-garrafa que marcaram a campanha de Freitas, por detrás de quem sentia escondido um Portugal contra o qual, pouco mais de uma década antes, eu fizera o 25 de abril. Algumas das caras que rodeavam Freitas do Amaral eram sinistras e não me mereciam a menor confiança democrática. Por semanas, criei mesmo a exagerada sensação de que a eventual chegada deste a Belém poderia significar o início de um regresso ao "fascismo". Por isso, a vitória de Mário Soares, numa muito difícil segunda volta, acabou por ser um dos mais felizes dias políticos da minha vida. Nessa bela noite de Lisboa, avariei, por excesso de utilização, a buzina do meu carro!

Uns anos mais tarde, numa deslocação a Nova Iorque quando estava no governo, andando pela rua com Freitas do Amaral, depois de um jantar, confessei-lhe: a possibilidade da vitória dele, em 1986, havia sido, para mim, um dos momentos mais angustiantes, como cidadão. Freitas do Amaral sorriu e disse-me: "Espero que, com o passar dos anos, tenha percebido que eu não era um fascista". Tinha toda a razão. Embora o futuro nunca me tenha dado uma absoluta certeza daquilo que Freitas do Amaral politicamente é, reconheço, sem a menor dificuldade, que não é um "fascista". E que, pelo menos por ele, o meu susto de 1986 era exagerado. Mas lá que essa vitória de Mário Soares foi muito saborosa, lá isso foi...  

Clain d'Estaing

Os artigos que Mário Soares enviava de França, onde estava exilado, para o jornal oposicionista "República", eram regularmente cortados pela censura.
 
Raul Rego, diretor do jornal, sondou um dia o serviço desse "Exame Prévio" sobre se poderia nomear como correspondente do jornal, em Paris, um primo do presidente Giscard d'Estaing. Aos coronéis do "lápiz azul" a ideia não mereceu objeção. E assim passaram a surgir no "República", com regularidade, textos de análise da situação política francesa subscritos por "Clain d'Estaing", o tal "primo" de Giscard. Que era nem mais nem menos do que Mário Soares.

Os incompetentes da censura nunca foram capazes de associar a homofonia do nome do correspondente à palavra francesa para "clandestino"...

Recordo aqui esta historieta, nestes que são os "dias" de Mário Soares.

As praxes e os militares

Há uns meses, o país indignou-se com a tragédia do Meco e, por umas semanas, discutiu as praxes. Depois, com a cobardia das autoridades universitárias, tudo voltou mais ou menos ao mesmo. Deparei, há uns tempos, com um grupo de energúmenos (significativamente da mesma universidade) a humilharem colegas no jardim do Campo Grande, em Lisboa. Dias depois, numa noite chuvosa e fria de Viana do Castelo, assisti a práticas idênticas. Porque a violência, mesmo "consentida", é crime, senti-me tentado a chamar a polícia. Desisti da ideia, pela certeza da inutilidade do gesto.

Há dias, a televisão trouxe-nos o caso de práticas violentas ocorridas nos Pupilos do Exército, bem documentadas e sem margem para quaisquer dúvidas. Trata-se do quarto caso, em duas semanas. Há décadas que estas denúncias ocorrem, sempre seguidas de "rigorosos inquéritos" de cujos resultados ninguém mais ouve falar. Há como que uma aceitação tácita deste tipo de agressões, protegidas por uma espécie de "omertà" que silencia as crianças e protege os agressores, com muitos pais cúmplices dessa atitude.

É pena que a imprensa não siga este caso com atenção, não deixando que ele caia no esquecimento. É triste que a hierarquia militar se cale, por um aparente corporativismo castrense que a não dignifica. E se a Associação 25 de Abril, cujos membros tanto se bateram pela democracia, se interessasse pelo assunto, provando que a liberdade não se perde ao atrevessar a porta de armas das instituições militares?

domingo, dezembro 07, 2014

Mário Soares

Começo por uma declaração de interesses: sou amigo de Mário Soares.

Vi-o pela primeira vez em 1969, à porta da Sociedade Nacional de Belas Artes, na rua Barata Salgueiro, em Lisboa, numa noite em que o então líder da oposição socialista pretendia aí fazer uma "sessão de esclarecimento". A polícia proibiu o "ajuntamento" e ouvi Soares, com voz forte e indignada, a contestar a decisão diante do famigerado capitão Maltez, antes deste ter ordenado a dispersão daquelas dezenas de pessoas, "por ordem do governo". Lembro-me bem de Soares perguntar, jocoso: "e que ministro é que deu a ordem? O da Agricultura?". Um grande jarrão à entrada de um vizinho restaurante chinês, atrás do qual me refugiei com uma amiga, ia sendo a vítima colateral da subsequente fuga dos circunstantes.
 
Cruzaria depois Soares, ainda nesse ano, em duas outras reuniões da oposição. Eu estava então noutra onda política, longe das suas ideias, mas apreciava-lhe já a coragem e a determinação. Depois das "eleições" de outubro desse mesmo ano, em que Soares e os seus amigos tiveram um resultado muito fraco - relativamente ao resto da oposição -, o líder socialista saiu do país e, mais tarde, seria obrigado a permanecer no estrangeiro, sob pena de ser preso se regressasse a Portugal. Só aqui chegaria em 29 de abril de 1974.
 
Verdadeiramente, a primeira conversa que me lembro de ter tido com Mário Soares seria quase 20 anos depois, em Londres, na nossa embaixada, aquando da sua visita de Estado, como presidente, ao Reino Unido. Falámos desses episódios da luta contra a ditadura e de amigos comuns. Criámos uma imediata relação de simpatia.
 
Em fins de 1995, dar-me-ia posse como membro do governo e, poucos dias depois, acompanhei-o a Israel e à Palestina, escassos meses antes dele abandonar Belém. Lembro-me de uma frase que então me disse: "Sabe que, em 10 anos como presidente, é a primeira vez que sou acompanhado numa visita oficial ao estrangeiro por um membro do governo da minha família política?" Era verdade. Fui o primeiro e o último, embora Soares me tivesse contado histórias que revelavam o cordial entendimento que tinha tido com alguns governantes do "cavaquismo", período a que Guterres tinha posto um ponto final, semanas antes.
 
Desde então, convivi bastante com Mário Soares. Tive o gosto de o ter a prefaciar e a apresentar um livro meu. Andei com ele por vários locais, de Estrasburgo a Roma, de Brasília a Paris. Em Lisboa, na sua Fundação e em várias outras ocasiões, tive o ensejo de trocar com ele impressões sobre o mundo, sobre a Europa e sobre as pessoas que ele cruzou. Integrei a "comissão de honra" da sua frustrada terceira candidatura à Presidência da República, que achei dispensável mas que entendi ter o dever moral de acompanhar. 
 
Tenho orgulho em poder hoje afirmar que sou amigo de Mário Soares. Tenho por ele um imenso respeito, uma profunda consideração pela sua postura cívica, pela magistratura ética que representa para o nosso país. No passado, nem sempre estive de acordo com ele e, ainda hoje, divirjo de algumas atitudes que toma ou de declarações que faz, sendo que essa divergência é muitas vezes mais pela forma do que pelo conteúdo. Mas essa é a "graça" de Mário Soares: ter a coragem da opinião forte, não se importar com a polémica, saber arrostar com a crítica, não se calar perante a indignação. Ter-lhe-ia sido mais fácil, se quisesse passar imune por entre as pingas da conjuntura, remeter-se a um silêncio de "Colombey", construir um currículo de silêncios graves, numa parcimónia de palavras e gestos que é a patine que molda os estadistas de cera. Soares não é assim e felizmente que o não é.
 
Mário Soares faz hoje 90 anos. Vou estar com ele e com alguns dos seus muitos amigos para lhe dar um forte abraço e para lhe agradecer a ventura que é tê-lo connosco. Soares não durará sempre e, quando um dia desaparecer, tenho a certeza que o nosso país ficará tristemente órfão do seu exemplo cívico.

sábado, dezembro 06, 2014

Tratado orçamental

Parece-me pouco sensato ouvir agora, da boca de alguns responsáveis da nova direção do PS, a ideia de que a anterior liderança não devia ter concedido o seu voto ao Tratado Orçamental europeu, quando, em 2012, esse instrumento jurídico foi submetido à ratificação pelA Assembleia da República, depois da sua assinatura.

O Tratado Orçamental foi uma medida de reforço do rigor macroeconómico desenhada para tentar acalmar os mercados, num tempo de grande incerteza. Não se nega o seu caráter constrangente e mesmo o eventual irrealismo daquilo que prevê em termos de metas. O PS votou a favor do Tratado na Assembleia da República. O que teriam feito os socialistas se acaso fossem poder em Portugal, à época? Se acaso tivessem conduzido o país a um voto contra, Portugal teria ficado isolado e seriam acusados de um gesto de grande irresponsabilidade. Basta pensar o que aconteceu com os socialistas franceses que, depois de uma grande agitação retórica antes das eleições presidenciais, acabaram por subscrever o Tratado, logo que regressados ao poder.

Alguns poderão dizer: mas se, em 2012, havia na AR uma maioria de direita suficiente para fazer aprovar o Tratado, não poderia PS ter evitado "sujar as mãos" com esse seu voto? Não. O PS é um partido de poder, não poderia ter gestos oportunistas dessa índole sem atingir a sua credibilidade política internacional. António José Seguro fez muito bem em fazer votar o Tratado Orçamental.

Outra coisa, agora, é a necessidade do PS, como António Costa tem vindo a defender, se juntar a quantos, um pouco por toda a Europa que subscreveu o Tratado, pugnam por uma sua leitura "inteligente", nomeadamente no tocante à discussão dos fundamentos em que assenta o conceito de "défice estrutural" e na questão dos critérios caraterizadores dos ciclo económicos, que poderão flexibilizar o rigor dos seus preceitos.  Essa, sim, é uma "bonne guerre".

sexta-feira, dezembro 05, 2014

Gastronomia

Hoje, a Academia Portuguesa de Gastronomia, presidida por José Bento dos Santos e da qual faço parte, procedeu, no Grémio Literário, à entrega anual dos seus prémios. Com um almoço, naturalmente.

Dentre os prémios, quero destacar o prémio "Maria de Lourdes Modesto", destinado a premiar, "a título excecional", "um restaurante de cozinha tradicional portuguesa de grande qualidade". A distinção, cujo merecimento pessoalmente reitero, foi para o transmontano "Geadas", um excelente restaurante da cidade de Bragança.

Na ocasião, tive o gosto de conhecer a patrona do prémio, Maria de Lourdes Modesto. Para além de fazer parte da memória televisiva da minha geração, a ela se deve uma cuidadosa recolha de receituário culinário português que muito tem contribuído para a fixação desse nosso património cultural.

"Tudo pela Palestina?"

Há pouco mais de três anos, Paulo Portas, num sound bite mais apropriado a um título de “O Independente” do que a uma declaração de um responsável pela política externa de um Estado, saiu-se com a frase “Tudo pela Palestina, nada contra Israel”. Tentar resolver a quadratura do círculo é uma atitude estimável, mas gratuita.
 
A comunidade internacional vive, desde há anos, com o angustiante dilema de tentar proteger Israel do recorrente extremismo de alguns dos seus dirigentes. Simultaneamente, e não obstante a diversidade na abordagem, o mundo tem procurado dar alento, político e financeiro, à estruturação do Estado palestino, ciente de que não pode deixar de responder à profunda injustiça que atravessa o destino do seu povo.
 
Israel parece agora tentado a uma fuga para a frente a qual, a concretizar-se, pode vir a ter consequências naquilo que, até agora, era a sua identidade inatacável: a democraticidade do seu regime. Ao optar pelo caráter judaico do seu Estado, Israel caminha para um regime de “apartheid” – e devemos ter a coragem de dizer estas coisas com todas as letras.
 
É lamentável que o governo português revele uma imensa tibieza face ao crescente movimento europeu no sentido de reconhecer o Estado da Palestina, como se já não tivesse bastado a lamentável postura assumida por ocasião da integração da Palestina na UNESCO, que foi depois necessário retificar de forma atabalhoada na ONU. A política externa portuguesa deve mostrar-se coerente com o sentido de responsabilidade que revelou, por muitos anos, ao abordar a questão israelo-palestina. Assim, deveria agora ter estado na linha da frente deste reconhecimento, não ficando comodamente à espera da sua quase inevitabilidade, com conforto parlamentar, para fazer esse gesto. "Prudência e caldos de galinha" não ilustram uma postura internacional e tentar passar despercebido e ganhar tempo, apenas para agradar a amigos poderosos, é apenas uma forma de poder ser vir a ser acusado de oportunismo. Isso não dignifica Portugal, como nas Necessidades deviam saber.
 
Artigo que hoje publico no "Diário de Notícias"

Só para lembrar

Porque estas coisas têm de ser ditas, irritem quem irritarem, quero destacar a serenidade construtiva demonstrada por Pedro Nuno Santos e pe...