sábado, dezembro 10, 2016

sexta-feira, dezembro 09, 2016

Maquilhagem


Gosto bastante das conversas, sempre curtas, com as maquilhadoras dos canais de televisão por onde, às vezes, passo. O ambiente parece o de um barbeiro, mas não é. Nesse caso - em que o meu barbeiro de décadas se converteu num amigo - a interlocução é mais prolongada. Com as maquilhadoras, a conversa é obrigatoriamente mais rápida, mas, às vezes, bem frutífera: já tive, dessas senhoras, boas dicas de restaurantes e de locais de férias. 

Na maquilhagem, há quase sempre, depois do programa, um segundo tempo: a desmaquilhagem. Se o exercício é à noite, salto quase sempre esse passo, optando por retirar em casa, com água e sabão, aquela poeira amarelada que nos dá o ar de velhas senhoras pálidas (já dei cabo de várias toalhas de rosto, porque aquela "tinta" é, de facto, terrível). Há dias, à saída de um debate, ao dizer a um colega de painel, velho "routier" semanal de uma certa televisão, que o não acompanhava à operação de retirada da "cor", ele retorquiu-me: "Não, eu vou sempre à desmaquilhagem. É que aqui fazem isso tão bem que quase parece uma massagem à cara. Há umas semanas, ia mesmo dormindo na cadeira...". Um destes dias, vou experimentar.

Hoje, num outro canal, a conversa foi sobre outro sono, o eterno. Como se sabe, há agora uma mania de maquilhar os mortos. A senhora com quem falava, que nunca atendeu mortos, estava numa tarde "gloriosa", divertida mas algo mórbida: "Deve ser uma experiência interessante: não se mexem, não falam e não se queixam da cor". Não resisti: "E, depois, dão muito menos trabalho, não é?". "Depois"? Ela não percebeu logo. "Porque não há que desmaquilhá-los, depois". Ela concordou, com um sorriso. "Então até já!", esperando que eu regressasse daí a cerca de uma hora. Mas eu fiz de morto...  

O mel de Putin


No discurso politico usado na campanha eleitoral, Donald Trump deixou sinais claros de uma simpatia pelo estilo de liderança de Vladimir Putin. Era óbvio que o fazia para sublinhar o contraste com o modelo Obama, acusando este de fraqueza e de falta de ambição na promoção dos interesses americanos. Daí a ser prenunciada uma entente Obama-Putin, com impacto à escala global, foi um passo fácil para os futuristas de pena ligeira.

O modo como Putin lidera a Rússia tem muito a ver com a circunstância de o fazer num país que se sente visivelmente humilhado pelo modo como terminou a Guerra Fria com o Ocidente. O facto das fronteiras da NATO e da União Europeia terem sido levadas, em poucos anos, até escassas centenas de quilómetros de Moscovo é uma reversão estratégica que a Rússia nunca aceitou. A sua população olha o estilo de Putin, e até às suas ousadias (na Geórgia e depois na Ucrânia, com o flagrante sucesso da Crimeia), como uma desforra ao desafio e ao “cerco” que entende existir à volta do país. E é com orgulho que deve olhar a ação militar na Síria, num Médio Oriente onde Moscovo nunca havia sido um ator no terreno, encenando, embora de forma limitada, uma espécie de “remake” do poder global que a URSS um dia foi.

Num mundo onde o conceito de “democracia”, de que ninguém ousa curiosamente afastar-se, é interpretado do modo mais diverso e antagónico, o modelo russo, a que alguns chamam já “democratura” (de democracia e ditadura), surge como apelativo para alguns – eleições com limitações, pressão sobre os media, fragilização da separação de poderes, intimidação ou repressão sobre opositores, etc. Estados como a Turquia ou mesmo a Hungria, para já não falar da Bielorrússia ou do Azerbaijão ou de todas as Repúblicas da Ásia Central, vão, embora a ritmo diferente, nesse caminho, que quase sempre incorpora uma clara personalização do poder.

O que não deixa de ser curioso é o que se passa entre nós, em Portugal, no que toca a uma sedução caricata em torno de Putin. Alguns setores, que tanto se ercarniçam - e com razão - contra o sectarismo dos Bálticos ou a brutalidade israelita, absolvem alegremente as distorções dos valores democráticos pelo “putinismo”, fecham os olhos à carnificina de Aleppo, valorizando apenas o combate russo ao desequilíbrio estratégico global pós-Guerra Fria. Sem o assumirem explicitamente, o seu raciocínio é caricaturalmente este: se Putin desagrada àquilo de que não gostamos (a NATO, a prevalência do poderio americano, uma ordem no Médio Oriente condicionada por Israel), então “que viva Putin!”. Putin significa autoritarismo e desprezo pelas regras da democracia “burguesa”? Pode ser quem sim, mas isso é apenas um despiciendo detalhe para quem, bem lá no fundo, nunca acreditou que isso fosse o essencial.

quinta-feira, dezembro 08, 2016

8 de dezembro


Por muitos anos, o dia 8 de dezembro foi o dia da mãe. Já não sei por que luas, deixou um dia de o ser, oficialmente. A data ficou-me na memória afetiva, porque acho que, com estas coisas, não se deve andar aos trambolhões pelo calendário.

quarta-feira, dezembro 07, 2016

Um adeus


Uma instituição que, por muitos anos, reforçou as relações entre diversificados setores da sociedade portuguesa e membros de comunidades originárias, em especial, da Europa de Leste e do Brasil, terá cessado agora a sua atividade, ao que me dizem. As relações externas portuguesas sofrerão assim uma perda de tomo - e isso é relevante para uma vertente, embora algo paralela, da nossa diplomacia. Embora nunca tivesse tido o ensejo de conhecer pessoalmente o espaço em causa, inclino-me perante a melancolia que sei que atravessa quantos nele, ou a partir dele, cultivaram laços que agora ficam mais fragilizados.

Parabéns, Mário Soares


Faz hoje anos Mário Soares. O seu estado de saúde não lhe permite usufruir em pleno um aniversário que nós, seus amigos, temos obrigação e prazer em comemorar, por aquilo que ele é, pelo que representa para um país cuja liberdade e bem-estar ele muito ajudou a construir.

O novo PCP


Acabo de ler uma notícia surpreendente: no Comité Central do PCP, depois deste XX Congresso, só resta Ruben de Carvalho de quantos militantes do partido - e foram muitos! - um dia estiveram presos durante a ditadura. A renovação geracional é um facto no seio dos comunistas, sem que isso, contudo, tenha conduzido a uma mudança profunda de orientação política, o que talvez seja o segredo da sua sobrevivência. Outros dirão que, pelo contrário, a sua participação bem sucedida na "geringonça" é a prova de que os comunistas continuam a seguir a máxima de Cunhal: firmeza estratégica e flexibilidade tática.

Para o Ruben de Carvalho, que foi, por muitos anos, a alma dessa grande realização que é a Festa do Avante, que há semanas cruzei numa bela charla radiofónica e com quem sempre lembro as divertidas jornadas em casa do Bartolomeu (Cid dos Santos), deixo aqui um abraço de amizade.

Polícia da Régua

Na minha terra, em Vila Real, quando se queria dizer que alguém era autoritário, façanhudo e de modos rudes, dizia-se que era "pior do que um polícia da Régua". Nunca soube a origem da expressão mas, confesso, passei a utilizá-la ao longo da vida, à vista de alguns especimens que se assemelhassem ao modelo de um cívico grave, de larga bigodaça e, claro, com barrriga - porque me habituei a associar a autoridade à existência de alguma proeminência abdominal. E, das muitas vezes que passo pela Régua, se me cruzo com um polícia, tento perceber se ele está à altura do mito.

Há pouco, no Tweeter, o meu amigo Fernando Barreto, irmão de "todos os Barretos", um vila-realense com fortes ligações familiares à Régua, atirou-me com esta surpresa: o "polícia da Régua", afinal, era de Vila Real...

Já nem nos mitos se pode confiar, caramba!

terça-feira, dezembro 06, 2016

Agora, a sério

O que se passou ontem com a entrevista do primeiro-ministro à RTP obriga a uma reflexão. 

A entrevista, em si mesma, pareceu-me basicamente correta. A barragem de "avisos" que as redes sociais de direita (deixemos de falar em "centro-direita", que é um termo próprio da direita envergonhada) haviam feito nos últimos dias contribuiu para a postura fortemente inquisitiva dos entrevistadores. 

Não me pareceu mal que assim fosse. António Costa não esteve à vontade, irritou-se e teve alguma dificuldade em "navegar", de forma satisfatória, pelas trapalhadas da Caixa. Pelo meio, disse algumas coisas interessantes sobre o tratamento europeu da questão da dívida e sobre as perspetivas legislativas em matéria laboral. O "ticket" de entrevistadores pareceu-me bem escolhido.

O escândalo - porque é um verdadeiro escândalo - foi a escolha dos jornalistas que, na RTP 3, analisaram a entrevista, na sua imediata sequência. Nem uma só dessas pessoas é conhecida por ter uma atitude isenta face ao atual governo. 

Para ser mais claro, trata-se de comentadores que, sem uma única exceção, defendem opções económicas e políticas opostas às de António Costa. Só por ali faltaram Camilo Lourenço ou José Gomes Ferreira ou Pedro Arroja ou Paulo Ferreira ou António Costa ou João Vieira Pereira ou a maré liberal da blogosfera - tudo gente que, dia após dia, exercita um jornalismo de oposição que, sendo legítimo, um juízo de meridiano equilíbrio editorial obrigaria a ser posto lado a lado, não com académicos defensores da "geringonça" (como depois fizeram com Paes Mamede ou Pedro Lains), mas com jornalistas que não façam parte do grupo dos invocadores do Diabo outonal que teima em atrasar-se.

Esteve muito mal neste caso a direção de informação dirigida por Paulo Dentinho, de uma RTP chefiada por Gonçalo Reis. Mostrar independência não é sinónimo de entregar poder informativo à oposição. Até porque me não recordo de que, nos tempos da antiga maioria, a opinião económica veiculada pela mesma RTP, que lembro que já era dirigida por Gonçalo Reis, fosse alguma vez tão esmagadoramente de esquerda como esta é de direita.

Frete

Acho lamentável que a RTP convide para comentar na RTP 3, depois da entrevista do primeiro-ministro, apenas e só jornalistas que, manifestamente, adoram António Costa. 

Assim não!

segunda-feira, dezembro 05, 2016

Ainda as Lajes

... mas desta vez nada tem a ver com os militares. Refiro-me à aterragem de emergência, ontem, no aeroporto das Lajes, na Terceira, nos Açores, de um voo da Qatar Airways. (Isto é motivo para um post? Que falta de imaginação!, devem estar a pensar. Mas já verão porquê!). Ao que parece, os traumatizados passageiros, entre eles alguns feridos por uma queda abrupta do avião, foram sujeitos a largas horas de espera. Um jornalista da Al Jazeera, que também nele viajava, filmou a indignação dessas pessoas e foi dando disso conta ao mundo. 

Milhões de cidadãos de várias nacionalidades, que só remotamente tinham até então ouvido falar de Portugal, ficaram a associar o nosso país a um acolhimento de "terceiro mundo", a uma burocracia sem sentido, a uma desorganização qualificadora de um país desagradável. Algum do esforço que por todo o mundo é feito para promover Portugal como um país "idílico" para o turismo, desde logo os próprios Açores, pode ter-se perdido nessa imagem negativa, na boca dos qataris e americanos entrevistados.

E, no entanto, a verdade pode não ser necessariamente essa.

Uma aterragem de emergência é isso mesmo, é uma emergência, que deve ter uma maior dificuldade em ser enfrentada por se tratar de um fim-de-semana. Além disso, aquele nosso aeroporto tem as condições que tem, é uma infraestrutura com um quadro de recursos humanos naturalmente impreparados para operações com aquela dimensão logística, pelo que deve ter tido de improvisar a resposta imediata.

Mas há um ponto que particularmente me impressionou: a queixa sobre o tempo que demoraram os procedimentos de verificação da identidade de todos os passageiros, que só podiam sair do aeroporto, para se instalarem em hotéis, depois de verificado se algum de entre eles estava impedido de entrar em território europeu. Ora, ao levar a sério esses procedimentos, ao não "facilitar", as autoridades aeroportuárias da Terceira deram apenas mostras de grande sentido de responsabilidade e profissionalismo. Imagino que seria "o bom e o bonito" se acaso, numa falha em matéria de controlo de segurança, alguém suspeito se tivesse escapulido...

E, confesso, apeteceu-me responder a um preconceituoso passageiro americano, que passou muito nas televisões, que ter passaporte americano não é sinónimo de não se ser um criminoso e que, em matéria de "racial profiling" em aeroportos, em particular no que respeita a não praticar discriminação contra "pessoas com cor indiana", não recebemos lições dos EUA. Até o nosso primeiro-ministro tem essa cor...

Itália

O que ontem se passou em Itália configura um dos tradicionais desvios que afeta os processos referendários. No sim-ou-não simplificado proposto aos eleitores, esconde-se sempre muito mais.

O voto negativo de ontem, para além de poder ser uma resposta à questão concreta colocada, corporiza igualmente a insatisfação do eleitorado face à generalidade da situação que atualmente vive - com estagnação na economia, desemprego elevado e uma visível degradação social no país.

A isso se soma um voto de censura a Renzi, um primeiro-ministro desgastado por não corresponder à esperança nele investida e que, para muitos, assumiu um gesto de chantagem e de alguma arrogância ao ter ligado a sua permanência em funções a uma mudança constitucional que, mal ou bem, por razões talvez diversas e contraditórias, muitos italianos não entendiam como positiva na forma apresentada.

A Europa pode vir a sofrer bastante com a instabilidade induzida pelo sentido deste voto e do modo como alguns dele se possam apropriar em eleições legislativas futuras, mas, com a modéstia que sempre devemos ter quando apreciamos uma situação desta complexidade, não creio que dele seja legítimo extrair uma atitude anti-europeia maioritária por parte da Itália.

Comentário internacional

É evidente uma crescente qualidade, em Portugal, no comentário televisivo sobre temas internacionais, por gente cada vez mais jovem.

Lembrei-me disto há pouco, ao ouvir Filipe Vasconcelos Romão e Bernardo Pires de Lima pronunciarem-se sobre os eventos de domingo. De ambos, ouvi palavras ponderadas, um evidente conhecimento dos temas, equilíbrio nos juízos produzidos.

Se a isto somarmos o conjunto de especialistas, também jovens (a exceção mais velha que lá anda apenas serve para confirmar a regra...), que António Mateus junta no programa da RTP "Olhar o Mundo", bem como outros nomes que surgem com regularidade noutros canais, julgo que estamos perante uma verdadeira geração de ouro nesta área.

Com toda a franqueza, creio que a política internacional está muito melhor servida do que a análise política interna ou mesmo a análise económica, onde os ditos "especialistas", com algumas boas exceções, se pressentem cada vez mais "balcanizados", ao serviço despudorado de ideologias ou lógicas partidárias, com um enviezamento das opiniões que cada vez mais os descredibiliza perante quem os ouve.

domingo, dezembro 04, 2016

Perder amigos

Ontem, por ocasião de um encontro de antigos estudantes, em Vila Real, um velho conhecido, que já não via há muitos anos, veio ter comigo: "Leio muito do que escreves e às vezes vejo-te na televisão".

Por curiosidade, perguntei: "E estás de acordo com o que eu digo?".

A resposta: "Nem sempre, nem sempre! Tu tens a mania de pensar muito pela própria cabeça e, às vezes, não "encaixas" onde a gente está à espera. Tanto dizes uma coisas com que concordo a 100% como, noutros assuntos, discordo em absoluto. E tens ocasiões em que és um pouco ácido de mais."

"Mas não achas bem que é mais honesto que eu diga exatamente o que penso, estando-me "nas tintas" para o efeito que isso possa ter nos outros?", retorqui.

Curioso foi comentário que se seguiu: "Não sei. A pensar assim, deves perder muitos amigos".

Calei-me. Não quis dar-lhe a razão que, de facto e cada vez mais, ele tinha.

(se, como disse, ele me lê, vai acabar por "ver-se" por aqui)

sábado, dezembro 03, 2016

(*) A confirmar

Um jornal traz hoje o anúncio de uma conferência, com o nome de alguns dos oradores seguido do clássico asterisco (*) e da nota "a confirmar".

Já tive a irritante experiência, por mais de uma vez, de ver o meu nome publicado com idêntica referência e, devo confessar, é muito desagradável. Porquê? Porque quase sempre há gente conhecida que vai a essa conferência / painel / palestra para nos ouvir e, mais tarde, vem queixar-se: "Então faltaste?". Ora quem, neste caso, "falta" a um evento, tendo sido dado como "a confirmar", são cidadãos que são incluídos no rol de oradores sem para isso terem dado o seu prévio consentimento. Trata-se, assim, de um abuso e de uma deselegância a pública indicação do seu nome.

Há meses, fui convidado para falar numa conferência determinada cidade do país. Nunca tinha ouvido falar da entidade que convidava (e a internet, estranhamente, não dava a menor referência sobre ela), não conhecia ninguém envolvido na organização, mas a finalidade do evento era interessante. Na conversa telefónica, foram-me listados os vários nomes "previstos". Pareceu-me "fruta a mais", dado o elevado peso dessas personalidades. E fiquei um pouco "de pé atrás". Porque havia a hipótese real de conflito com outro compromisso, pedi para confirmar só uma semana mais tarde. Falei, entretanto, com dois dos oradores "previstos" e eles disseram-me que, pelas mesmas dúvidas que as minhas, já tinham recusado.

Voltaram a ligar-me da organização. Perguntei se se confirmava a presença dos restantes oradores que me tinham sido referidos. Foi-me dito que sim, que estavam todos "previstos". Entendi responder assim: "Muito bem. Eu irei, embora seja bastante longe de Lisboa e vá fazer algum esforço para conseguir chegar a tempo. Mas permita-me que coloque uma condição: só podem confirmar o meu nome se todas as pessoas que me referiu forem. Telefonarei na véspera para me assegurar disto".

Claro que o meu nome foi anunciado. Claro que a (esmagadora) maioria dos nomes (com o tal abusivo asterisco) não foram. E, claro, eu também não.

sexta-feira, dezembro 02, 2016

O dilema comunista

Não deve ser fácil a reflexão que o PCP leva a cabo, no quadro deste seu XX Congresso. (Caramba! Quem se lembra de um outro histórico XX Congresso?). Depois de se ter aliado à direita para derrubar o detestado governo PS, em 2011, abrindo caminho ao que aí veio, o PCP terá aprendido uma imensa lição: nem sempre a lógica do "quanto pior melhor" compensa. Com o país à beira de um sufoco, com a "troika" a mandar cá dentro, com a exceção a ser regra, com os direitos adquiridos a irem por água abaixo, o eleitorado comunista estava desejoso de se ver livre da funesta coligação que, de uma penada, aproveitara o alibi externo para desmantelar alguma coisa do que restava das "conquistas de abril". Sem expressão política para impor uma alternativa, contando quase só (o que, contudo, não é pouco) com a força negativa da rua sindical, o PCP viu-se tentado a apanhar a oportuna "boleia" que o PS lhe sugeriu - muito embora tivesse de ir na incómoda companhia do Bloco, que sempre lhe rói algum eleitorado à esquerda e na juventude. Na construção da "gerinçonça", o PS pagou o caro preço das reversões das privatizações dos transportes públicos de Lisboa e Porto, que assim puderam continuar a alimentar os cofres sindicais. Outras cedências, na Educação, aquietaram esse grande "dirigente operário" que se chama Mário Nogueira. E outras houve. No resto, nas pensões e em certas reversões, o PS fez apenas o que muito lhe apetecia fazer. E, para os socialistas, o negócio não era mau de todo: muitas bases do partido, e parte importante do eleitorado, reveem-se abertamente numa agenda de esquerda e isso acabou por fidelizar votos que a deriva segurista parecia estar a fazer fugir. A acreditar nas sondagens, isso é hoje uma realidade. Mas essa é também uma realidade muito preocupante para o PCP. É que ver grande parte da esquerda a tender a votar PS numa próximas eleições é algo que inquieta bastante os comunistas, um partido muito feito de lições da História, entre as quais se inclui a da nulificação do PCF que François Mitterrand conseguiu, associando-o ao poder. Assim, neste XX Congresso, um fantasma, na forma de um dilema, deve andar a pairar por lá. Continuar a apoiar o PS, deixando-lhe os louros das medidas populares da governação, podendo com isso erodir a sua base eleitoral de apoio? Ou começar a pensar a hipótese de romper com estrondo, com a Europa ou um incidente qualquer como pretexto, obrigando o país a ir a votos, com o PCP a reivindicar os louros de esquerda da "geringonça"? Como sempre acontece nas decisões burguesas - e não há nada de mais burguês na vida política nacional do que o PCP -, no meio é que está a virtude: Jerónimo de Sousa deve vir a conseguir um mandato para uma navegação à vista, com um crescendo de tensão, adubado por via sindical, que, se oportuno, pode levar à rutura no orçamento de 2018. É o esticar da corda, que pode vir a ser atenuado com mais algumas concessões futuras, que o PCP dirá ter arrancado a ferros. O PCP, honra lhe seja, cumpre sempre o que promete, em termos de negociação política. Mas não pode prometer ser contra a sua natureza e essa é a de uma cultura de taticismo obsessivo, de "ir andando", lutando pela preservação do "statu quo", enfim, lá no fundo, por esse seu grande e permanente objetivo, na respeitável leitura que faz da bondade do seu papel político: sobreviver.

Na despedida de Fidel

Acho estranho que quantos por cá ainda hoje se obstinam em defender a herança política de Fidel não consigam entender que muitos só toleraram o caráter ditatorial do regime cubano enquanto vivíamos num mundo bipolar, em que as ditaduras de direita eram estrategicamente protegidas, numa lógica anticomunista.

Desde que esse mundo acabou, que sentido tem defender a existência de um regime de partido único, sem uma única voz dissonante no parlamento, sem imprensa livre e com a dissidência a ser motivo para detenção imediata? E não deve haver nada mais parecido com uma prisão política de uma ditadura de direita do que uma prisão política de um regime que se afirme de esquerda.

Independência


Num intervalo de escassas horas, saudámos um Filipe, titular da soberania de um país amigo e aliado, e comemorámos a restauração de independência de Portugal – a data em que, vai para quatro séculos, conseguimos afastar-nos da tutela incómoda de um outro Filipe com idêntica origem, reafirmando orgulhosamente a nossa independência.

Lembrei-me disto ontem, em Vila Real, quando, com o grupo de amigos que, invariavelmente nessa data, se reúne junto do busto a Camilo Camilo Castelo Branco, patrono do liceu em que estudámos, entoava com patriótica inconsciência o anti-castelhano Hino da Restauração.

A História dá muitas voltas e, sem que os factos necessariamente se desmintam, aos vilões de ontem sucedem-se as figuras simpáticas de hoje (ou vice-versa, como, na mesma pessoa, ocorre por estes dias com Fidel). Por isso, a prudência de atitude aconselha a que nos não deixemos aprisionar pelas caricaturas e pelos mitos. Sem perder de vista o passado, devemos olhar essencialmente o futuro, que é o lugar onde vamos passar o resto das nossas vidas e onde a comunidade nacional a que pertencemos encontrará (ou não) razões e forças para se manter independente – seja isso o que for, nos tempos que correm.

O 1º de dezembro é uma data interessante, quiçá equívoca, porque em seu torno se unem os saudosos da dinastia dos Bragança e aqueles que, há mais de um século, lhes deram como destino definitivo as prateleiras da História. Daí o incómodo que a todos atravessou quando um fugaz epifenómeno politico - anti-grisalho e modernaço – tentou, por algum tempo, abafar a data.

O presidente português, que dá mostras de viver o nosso percurso histórico sem complexos nem traumas, trouxe os reis espanhóis às vésperas da Restauração. Fez bem. Filipe VI, que hoje simboliza a unidade espanhola, tem a legitimidade que lhe foi conferida por uma Constituição que o povo daquele país sufragou, de forma esmagadora. E sucede a alguém que, num momento muito difícil, se mostrou em sintonia com a vontade democrática da Espanha.

Aliás, se atentarmos bem, as monarquias europeias que hoje restam derivam todas de soberanos que, em momentos-chave, revelaram saber interpretar o interesse essencial dos seus povos.

A Espanha vive num regime monárquico. Só temos que respeitar essa opção – ou gostaríamos que, um dia, numa visita a uma qualquer monarquia, o presidente da nossa República fosse hostilizado por monárquicos?


Custa-me ter de constatar, como republicano que sou e sempre serei, que o triste espetáculo protagonizado pelo Bloco de Esquerda, na receção aos reis espanhóis na Assembleia da República, prova que afirmar-se republicano não é necessariamente sinónimo de ser democrata – que é, muito simplesmente, saber respeitar as livres opções dos outros.  

Os EUA, a ONU e Gaza

Ver aqui .