sexta-feira, junho 19, 2009

O "Lisboa"

Reconheço que se trata, talvez, de uma atitude muito geracional. Mas, tenho de confessar, a desaparição, já há quase duas décadas, do "Diário de Lisboa" acabou por ser, para mim, algo traumática, no saldo de memória da imprensa portuguesa em que fui criado. Por isso, a morte do seu antigo proprietário e director, António Ruella Ramos, agora ocorrida, associa-se a essa tristeza e convida aqui a uma nota sobre o jornal.

O vespertino lisboeta foi, durante as décadas da ditadura, uma referência diária na imprensa democrática portuguesa. Tentou sempre representar, ao lado do "República", um espaço para as vozes dissidentes, muito mais do que o equívoco "Diário Popular" (que me desculpem os amigos que por lá tive) e bem antes de "A Capital" - um jornal que resultou da saída , em 1968, de um grupo de jornalistas do "Lisboa". Uma anedota oposicionista espalhava então que os ardinas, pelas ruas de Lisboa, anunciavam assim os quatro jornais da tarde: "Lisboa / Capital / República / Popular!".

O "Lisboa" era um jornal diferente de todos os outros. Menos "popular" que o "Popular", menos "reviralhista" que o "República", menos "à la page" que "A Capital". Para nós, os fiéis, tinha códigos de leitura muito próprios, tinha entrelinhas que nos animavam as tardes nos cafés, funcionava como um repositório de esperança democrática. E tinha gente nova, que aí escrevia, com quem nos cruzávamos, depois da saída do jornal, na "Brasileira" ou no "Monte-Carlo".

Para mim, que "aderi" ao jornal aí por 1966, marcaram-me muito os tempos de "Mosca" (um suplemento humorístico dos sábados, que fez história), do DL Juvenil (suplemento literário para jovens, por onde passou quase tudo quanto "foi gente" na cultura portuguesa imediatamente posterior) e do seu destacável cultural (creio que às 4.ªs feiras, num tempo em que todos os vespertinos mantinham espaços idênticos). Comprar o "Lisboa" era um "vício": imaginem o que seria, nos dias que correm, esperar pelo jornal de ontem, a meio da tarde do dia seguinte! Pois era isso que nos acontecia, pela província onde passávamos férias, disputando com ardor os escassos exemplares vendáveis. Eram outros tempos! Melhores? Claro que não, apenas muito diferentes.

O "Lisboa" teve na redacção nomes da literatura como Sttau Monteiro, Cardoso Pires, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos Eurico da Costa, Fernando Assis Pacheco ou José Saramago (fazia inicialmente traduções...). E jornalistas como Álvaro Salema, Norberto Lopes, Artur Portela, José Carlos de Vasconcelos, Veiga Pereira ou Manuel de Azevedo. E a pena ácida e certeira de Mário Castrim ou Pedro Alvim, entre tantos e tantos outros.

Recordo, em particular, os tempos eleitorais, em que aguardávamos o "Lisboa", com aquele "lettering" de título idêntico ao "Le Monde", com grande ansiedade, para ver o que a censura tinha "deixado passar". E, valha a verdade, também lembro os tempos de uma menos saudável ortodoxia, após o 25 de Abril, onde a antiga pluralidade se diluiu - e que terá contribuído, entre outros decisivos factores, para liquidar o jornal.

Mas hoje é tempo de saudar o saldo bem positivo do velho "Diário de Lisboa", na hora da saída de cena de Ruella Ramos, um homem de bem, uma grande figura da imprensa portuguesa, que manteve o seu jornal até onde lhe foi sustentável.

4 comentários:

Helena Sacadura Cabral disse...

O Piqui Ruela Ramos era uma pessoa encantadora e o seu Diário de Lisboa foi uma escola de informação que também marcou a minha geração.
Como o Senhor Embaixador, também eu, ainda hoje lhe sinto a falta!

Helena Sacadura Cabral disse...

Devo acrescentar que devo ao DL a minha amizade com o Mário Castrim, seguramente, um dos grandes amigos com que contei.
Ficou-me da sua herança a Alice Vieira, sua viúva, uma das escritoras que mais respeito e que, hoje, ocupa o seu lugar no meu coração.

Anónimo disse...

Deve ter sido o único jornal onde as críticas da Televisão eram lidas (e com interesse). Quem comprava o DL, lia sempre as críticas do Mário Castrim. Mesmo sabendo que a Televisão era o que era, a rapaziada, mesmo os mais jovens, como eu, lia o que o Castrim dizia, muitas das vezes com um humor ácido e irreverente, que curiosamente passava na censura marcelista. Pena, de facto, que após o 25 de Abril aquele que era um vespertino de referência, se tenha transformado num veículo de propaganda partidária, com Castrim já nessa altura a afinar, também ele, por esse diapasão. E assim o DL desse “pós-25” veio a perder leitores, entre os quais eu, que bem apreciava o antigo DL, do “antes-25”.
P.Rufino

João Antelmo disse...

Não concordo que o DL pós 25 de Abril fosse, em especial, um "veículo de propaganda partidária" - ou, pelo menos, que o fosse mais do que a "concorrência". É verdade que, além de alguns apoantes de "partidos", como Mário Castrim que transitou do "ante" para o pós-25 de Abril, se mantiveram outros que o não eram (incluindo o "Piqui" Ruella Ramos, insuspeito de submissão ao(s) partido(s).
o "Lisboa" foi vítima,isso simj, de um certo revanchismo post-25 de Novembro, como outros jornais (República, Século...) e revistas.
O "Piqui" Ruella Ramos, que tive ocasião de conhecer desde 1969, era, além de um patrão da imprensa à moda antiga, um homem generoso.

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